Panorama internacional

Por que é tão difícil conciliar soberania com democracia na América Latina?

Historicamente, uma região de intensas turbulências políticas, a América Latina vive mais uma vez um período de conflitos envolvendo governos, oposições e influências externas, como é o caso de Venezuela, Bolívia, Nicarágua e Peru.
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E é justamente o processo histórico desses continentes que explica a dificuldade que essas nações têm de defender a soberania sem resvalar em atos antidemocráticos, segundo estudiosas ouvidas pelo podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, nesta terça-feira (6).

"Essas crises são resultado de um processo de consolidação dos Estados-nação no continente sul-americano. […] começa no século XIX e muitos sofrem com a escravidão, com questões de terra, com questões indígenas, como o caso do Brasil que sofreu com tudo isso", pontuou a pós-doutoranda em estudos marítimos pela Escola de Guerra Naval (EGN) Jéssica Gonzaga.

Para tornar ainda mais complexo esse processo histórico, acrescentou, o século XX chegou com as intervenções estrangeiras, ditatoriais, na conjuntura da Guerra Fria sob o apoio dos Estados Unidos.
A pressão mais incisiva dos EUA em moldar a política de defesa latino-americana se deu primeiro por meio de acordos militares, lembrou Gonzaga, com o objetivo de neutralizar a presença da União Soviética.
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O ápice da estratégia norte-americana, segundo ela, foi o estabelecimento da Doutrina de Segurança Nacional, que criou "o mito de um inimigo externo e um inimigo interno dentro desses países. As Forças Armadas vão assumir esse papel de imposição dessa doutrina", defendeu, "o que vai inclusive justificar a eclosão desses regimes civis e militares que vão eclodir no país".
Professora de relações internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Regiane Nitsch Bressan também foi ouvida pela Sputnik Brasil e acrescentou que a América Latina nunca deixou de ser um quintal dos EUA.
"Eles [EUA] estão sempre avaliando, observando e sempre tentando ter influência, sobretudo a partir de seus interesses econômicos", comentou, ao citar a Venezuela como mais recente foco do governo norte-americano no continente.

"A Venezuela é uma das principais produtoras de petróleo e tem uma das maiores reservas de petróleo no mundo, e os Estados Unidos dependem dessa reserva. Aliás, durante todo o governo chavista, seja de Hugo Chávez, seja de Nicolás Maduro, os Estados Unidos nunca deixaram de comprar petróleo venezuelano."

Nesse contexto de interferências externas e defesa da soberania, a história mostra que os governos das nações deste lado de cá dos trópicos costumam flertar com o autoritarismo.

"Vemos governos que são eleitos democraticamente, mas que vão rompendo gradativamente com essas instituições com o aval da população, porque a população acredita que ele não é apenas um condutor dessa sociedade, mas sim teria superpoderes para atuar como bem quisesse", desatacou Bressan.

A professora da Unifesp enfatizou que a América Latina enfrenta um problema estrutural crônico de pobreza, desigualdade e democracia frágil.

"Tudo isso favorece que tais governos, sejam de esquerda, de direita, de extrema-direita ou extrema-esquerda, passem a flertar, passem a dar vazão a certas condutas autoritárias, que muitas vezes só pelo fato de ter sido eleito democraticamente é chancelado pela população."

Citando pesquisas, ela argumentou que grande parte da população latino-americana prefere um governo autoritário que resolva as mazelas da desigualdade a um governo democrático. "Isso mostra que é um continente em que é muito fértil para a emergência desses governos."
Por conta desse contexto, em momentos de polarização, as Forças Armadas são vistas como representativas de um determinado governo e projeto político, ponderou a especialista em estudos do mar.

"Isso é muito perturbador para essas questões de segurança e soberania do Brasil e também, evidentemente, da América do Sul, porque abre precedente para que volte uma tradição existente na América do Sul, que é o uso das Forças Armadas como um elemento mediador, em que as Forças Armadas são acionadas para retirar uma determinada classe política do poder e colocar outra no lugar."

A profissionalização das Forças Armadas afastaria essa tendência, frisou.

"Se as Forças Armadas são vistas como um elemento, um instrumento mal utilizado por determinados governos, partidos, isso gera quase que uma visão de luta de classes, em que o militar é contrário ao civil. É necessário uma atualização e uma profissionalização, a fim de evitar que esse tipo de polaridade atinja as Forças Armadas e, portanto, comprometa a segurança sul-americana", argumentou ela.

No caso do Brasil, lembrou, o uso das Forças Armadas como instrumento de determinada classe social ocorre desde a Proclamação da República, acionadas para retirar determinado grupo e colocar outro no poder.

"E hoje, o que o Brasil enfrentou, na verdade, no governo [de Jair] Bolsonaro, foi uma tentativa, porque já há grandes evidências da tentativa de um golpe liberado por alguns oficiais generais. Isso está diretamente relacionado a um passado histórico muito recente do continente sul-americano. Em momento algum vimos as Forças Armadas assumindo o poder, democratizando e melhorando a vida das camadas populares", afirmou a especialista.

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Sem educação e distribuição de renda não há solução

"Países que combatem desigualdade e pobreza têm muito mais chance de estabelecer maiores condições para as instituições democráticas. E, claro, existe um constrangimento internacional também importante que vai balizando e evitando que governos autoritários surjam, tomem muito poder ou tomem muito espaço."

Parte dessa estratégia inclui, segundo ela, a ampliação da participação e controle social nas esferas do próprio governo, o cumprimento das regras claras, transparentes e justas. A pós-doutoranda ressaltou o papel da educação nesse processo.

"Quando se investe na educação desses países, quando há combate à corrupção, combate às fake news, quando temos um papel ativo da imprensa, tudo isso vai corroborar para uma estabilidade no continente. É necessário aprender como um sistema de governo funciona, o que são os Três Poderes, como funciona um processo eleitoral, que se conheça a história, porque somente assim a gente consegue aprimorar as políticas públicas, e a consequência disso é o fortalecimento das instituições", concluiu Gonzaga.

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