Panorama internacional

Brasil fere soberania da Venezuela ao pedir atas eleitorais? Analistas divergem

Brasil, México e Colômbia insistem no pedido das atas eleitorais venezuelanas, exigindo sua divulgação pelo Conselho Nacional Eleitoral, e não pelo Tribunal Supremo da Justiça. Ao condicionar o reconhecimento das eleições à divulgação dos dados de cada uma das mesas eleitorais do país, o Brasil está interferido na política interna da Venezuela?
Sputnik
Nesta quinta-feira (8), os governos de Brasil, Colômbia e México emitiram novo comunicado conjunto sobre as eleições na Venezuela, solicitando que as atas eleitorais por mesa de votação do país sejam divulgadas pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE) da Venezuela.
O comunicado reforça o apoio dos três países "a soberania e vontade do povo venezuelano" e sua determinação em "manter conversas de alto nível" para que soluções para a situação atual surjam da Venezuela.
Após reunião ministerial no Palácio do Planalto, os ministros da Casa Civil, Rui Costa, e das Relações Exteriores, Mauro Vieira, reafirmaram o desejo do Brasil de atuar como mediador da questão venezuelana, reportou o Poder 360.

"O Brasil quer ser parte da solução e não do problema. E parte da solução, no momento, é pedir que as autoridades responsáveis pela eleição apresentem as atas de votação por seção, detalhadas, para que o mundo inteiro possa olhar e confirmar o resultado da eleição, ou – se tiver problemas – buscar uma solução para isso", disse Mauro Vieira durante a reunião ministerial.

A posição brasileira tem enfatizado a divulgação de "atas eleitorais" que, tecnicamente, são os dados desagregados das eleições venezuelanas por mesa de votação do país, como fundamental para definir os resultados eleitorais no país. Dessa forma, o Brasil ainda não reconheceu a vitória de Nicolás Maduro anunciada pelo CNE, tampouco a autoproclamada vitória do candidato da oposição, Edmundo González Urrutia.
O presidente venezuelano Nicolás Maduro concede uma entrevista coletiva no palácio presidencial de Miraflores, em Caracas, Venezuela, em 31 de julho de 2024
"Se tem um problema, como vai resolver? Apresente a ata. Se houver dúvida entre oposição e situação sobre a ata, a oposição entra com recurso e vai esperar na Justiça correr o processo. Terá uma decisão que a gente tem que acatar", disse o presidente Lula em entrevista à Globonews.
No entanto, a apresentação das atas não parece ser um processo tão simples quanto as autoridades brasileiras dão a entender. Apesar de o dia das eleições na Venezuela ter percorrido sem grandes percalços, os problemas começaram assim que as urnas eletrônicas foram encerradas. De acordo com o CNE, houve um problema na transmissão dos dados referentes aos votos dos centros de votação para a central. O conselho, órgão constitucional e independente que organiza as eleições no país, declarou ter sido alvo de um ataque cibernético.
Líder do partido governista, Diosdado Cabello, participa de um comício em defesa da reeleição do presidente Nicolás Maduro em Caracas, Venezuela, em 3 de agosto de 2024
Nesta segunda-feira (5), o presidente do CNE, Elvis Amoroso, informou ter enviado as atas para o Tribunal Superior de Justiça (TSJ), que confirmou a entrega do material. O tribunal, órgão máximo do Judiciário venezuelano, afirmou que apurará os dados e investigará acusações de fraude. De acordo com a presidente do órgão, Caryslia Rodrígues, o processo poderá tomar até 15 dias.
O comunicado de Brasil, México e Colômbia emitido nesta quinta (8), no entanto, explicita querer acessar os dados do CNE, e não a apuração do tribunal. Os países indicam que "ao tomarem nota da ação iniciada perante o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) da Venezuela sobre o processo eleitoral, partem da premissa de que o CNE é o órgão a que corresponde, por mandato legal, a divulgação transparente dos resultados eleitorais".
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Para a repórter e diretora da ComunicaSul e mestra pelo Programa de Integração da América Latina PROLAM da Universidade de São Paulo (USP), Vanessa Martina Silva, que esteve em Caracas durante o processo eleitoral, o pedido brasileiro configura ingerência nos assuntos internos da Venezuela.

"Imaginemos que um país como o México, ou França, ou a Rússia, após as eleições e vitória de Lula no Brasil – que foi uma vitória apertada – exigissem o acesso [não aos dados do TSE], mas de cada uma das urnas brasileiras, e só assim reconhecerem a vitória de Lula. Exigissem acesso ao código fonte das urnas – como, aliás, pediu o bolsonarismo. Isso seria um absurdo, uma ingerência. O processo brasileiro é legitimado pelos brasileiros. E assim deve ser para todos os países soberanos", disse Silva à Sputnik Brasil.

A especialista lamenta que o Brasil não enviou observadores do Tribunal Superior Eleitoral para a Venezuela por motivo torpe e lembra que a oposição venezuelana dispõe de métodos legais para contestar os resultados das eleições, através do pedido de impugnação.
Edmundo González Urrutia, candidato da oposição Plataforma Unitaria Democrática da Venezuela
"A oposição não pediu a impugnação de nenhuma mesa sequer. Preferiu simplesmente alegar fraude e, posteriormente, autoproclamar Edmundo Gonzalez [...] como presidente", relatou Silva. "Ao fazer esse pedido das atas, o Brasil contribui com a indefinição política interna e joga água no moinho da direita venezuelana, que está usando as declarações do presidente Lula para fazer proselitismo político."
Por outro lado, a posição mediadora brasileira foi comemorada pelo pesquisador do Núcleo de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Brasília (UnB), Robson Valdez. Para ele, a postura "está de acordo com a tradição da política externa brasileira de defesa da paz, da não intervenção e de preservação de canais de diálogo em situações como as vivenciadas pela Venezuela".
"Trata-se de uma situação muito sensível. Em que pese todas as denúncias de violações de direitos humanos por parte do governo Maduro que se avolumaram em um contexto que envolveu severíssimas sanções econômicas impostas pelos EUA, tentativas de golpe de Estado com apoio dos EUA e má gestão da economia do país, o sistema eleitoral venezuelano vinha desfrutando de credibilidade junto à comunidade internacional", concedeu Valdez.
Para ele, "o papel de Brasil, Colômbia e México não é o de exigir qualquer coisa, mas o de construir, de forma propositiva, a oportunidade para que o governo da Venezuela apresente de forma clara e transparente o resultado oficial das eleições".
Um homem usando uma máscara facial passa por um mural representando uma bomba de petróleo e a bandeira venezuelana, em uma rua de Caracas, em 26 de maio de 2022
A especialista em América Latina e professora de relações internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Regiane Nitsch Bressan, lembra que cabe ao Brasil elaborar propostas, mas não resolver as divergências políticas internas da Venezuela.
"O Brasil não vai nem tem que resolver a problemática doméstica da Venezuela. Os países vão pressionar pela democracia, no limite vão aplicar sanções, mas os Estados são independentes, são soberanos, e a gente não pode invadir um país para que ele seja democrático, senão é justamente o que os EUA alegaram em 2003 com a guerra no Iraque", considerou Bressani.
As pressões exercidas pela mídia e lideranças internacionais para que Lula adote uma "posição mais enfática" sobre a Venezuela, segundo Bressani, devem ser afastadas pelo Brasil, que "tem a prerrogativa de não ingerência".

Déjà-vu da autoproclamação

No dia 29 de julho, o principal partido opositor Plataforma Unitária deu início a protestos de rua violentos – chamados guarimbas, que gradualmente perderam força. Nesta segunda-feira (5), o grupo publicou carta na qual o candidato Edmundo González Urrutia se autoproclama "presidente eleito" do país. O candidato ainda incita um levante militar no país ao pedir que as Forças Armadas "desobedeçam às ordens" do governo civil.
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Para os analistas ouvidos pela Sputnik Brasil, a autoproclamação de González dificulta, mas não inviabiliza a mediação brasileira do imbróglio eleitoral.
"A autoproclamação é mais um elemento complicador que busca mobilizar a oposição junto à sua demanda de reconhecimento como vencedores da disputa eleitoral", considerou o pesquisador da UnB Valdez. "Não acredito que essa autoproclamação interfira no processo mediador do Brasil e demais países, pois o foco de toda mediação é a apuração dos resultados eleitorais por parte das autoridades eleitorais da Venezuela."
Para a mestre pela USP Vanessa Martina Silva, o Brasil deverá manter sua posição tradicional e não reconhecer a autoproclamação de González e focar a sua postura no diálogo com a Justiça venezuelana. A professora da Unifesp lembra que, a exemplo de Guaidó, a autoproclamação não tem efeitos concretos, pois não altera a base de sustentação do governo Maduro.
Juan Guaidó, líder da oposição venezuelana
"É do interesse do Brasil que o continente desfrute de um ambiente de paz e estabilidade", argumentou Valdez. "O Brasil é o país com a maior economia e maior extensão territorial do continente, por isso possui fronteiras com a maior parte de seus vizinhos, importantes mercados e destinos de investimentos diretos brasileiros. Assim, o aumento da instabilidade na Venezuela traz profundos impactos negativos nos campos da economia e da segurança."
No dia 28 de julho, eleições gerais foram celebradas na Venezuela, após negociações internacionais estabelecerem acordo em oposição e governo local. No dia 2 de agosto, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) anunciou a reeleição do governista Nicolás Maduro com 51,97% dos votos, contra 43,18% do candidato opositor Edmundo González Urrutia. Na ocasião, o presidente do CNE, Elvis Amoroso, reiterou sua denúncia de "ataques informáticos massivos" feitos contra o sistema eleitoral venezuelano, o que teria atrasado a contabilização final dos resultados.
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