Panorama internacional

Imperialismo e violência: o que está por trás da onda anti-imigração no Reino Unido?

Partes do Reino Unido foram tomadas nas últimas semanas por protestos violentos que incendiaram mesquitas e hotéis onde vivem refugiados que aguardam autorização de asilo, a maioria de países que foram colônias do império inglês. A situação levou nações como Índia, Malásia e Nigéria a alertarem seus cidadãos que vivem no território britânico.
Sputnik
No fim de julho, um esfaqueamento em massa na cidade britânica de Southport gerou comoção em todo o Reino Unido: na ocasião, um estúdio de dança foi invadido e três crianças assassinadas. A violência que já assustava pela crueldade escalou ainda mais no país por conta de notícias falsas veiculadas nas redes sociais sobre possíveis autores do atentado. Posts compartilhados por influenciadores de direita apontavam que o possível responsável era um jovem muçulmano que havia solicitado asilo após chegar de barco ao país.
Essas alegações, sem nenhuma comprovação, foram suficientes para inflar uma multidão já arraigada pelo ódio contra estrangeiros, que passou a sair às ruas pedindo deportações em massa. Em poucos dias, os protestos se transformaram em uma onda de violência, com distúrbios que provocaram até mesmo cenas de destruição, com carros, mesquitas e hotéis incendiados.
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A situação foi o primeiro grande desafio do Partido Trabalhista, que retornou ao poder com o primeiro-ministro, Keir Starmer, no último mês após vencer os conservadores, que estavam há quase duas décadas no governo.
As eleições gerais também marcaram a chegada inédita ao Parlamento britânico do partido Reform UK, com cinco cadeiras. A sigla ganhou a cena política por defender o bloqueio do que chamam de imigração "não essencial" — quando é uma política de governo para fins específicos, como aprovar a entrada de estrangeiros no país para trabalho em setores específicos.
Apesar da violência ter reduzido nos últimos dias, a situação ainda preocupa o governo pelo potencial de incentivar a desordem generalizada no país, em que até o empresário Elon Musk teria chegado a dizer que uma "guerra civil" seria inevitável no Reino Unido.
Enquanto isso, países como Índia, Malásia e Nigéria, que inclusive foram colônias do império britânico até o último século, chegaram a alertar sobre os riscos que seus cidadãos poderiam enfrentar em todo o Reino Unido. Tudo isso escancara a hipocrisia de ex-colonizadores marcados pelo passado desestruturador do Sul Global?
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Para a professora associada e coordenadora do Laboratório de Estudos de Imigração (Labimi) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Érica Sarmiento, a agenda contra a migração no Reino Unido e em todo o Norte Global não assume o passado "colonizador" em relação ao Sul Global, e afeta principalmente os países africanos, muitas vezes atingidos por crises econômicas, violências diversas e até problemas climáticos causados por grandes empresas que prejudicam o campo.
"Há, inclusive, uma migração enorme de crianças no século XXI, tanto da África, América Central e América Latina, de uma forma geral, se deslocando para o Norte Global. Então temos casos de barcos afundando no Canal da Mancha [que separa o Reino Unido do restante do continente europeu] com famílias inteiras a caminho dessa região que, na verdade, independente da sua ideologia política, não contempla políticas migratórias satisfatórias para esse Sul Global", resume à Sputnik Brasil.
Dados do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra) da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) de 2022, os mais recentes disponíveis, revelam que 14% da população do Reino Unido nasceu no exterior, índice igual ou próximo de países como Estados Unidos (14%), Espanha (16%) e Letônia (12%).

"Isso é um tema que continua em pauta no pós-pandemia, continua preocupando a sociedade europeia, a sociedade do Reino Unido, quando, na verdade, existem duas questões importantes que a gente precisa ter em consideração. Primeiro é: esses países precisam de imigrantes? Sim. Esses países têm excesso de imigração? As estatísticas, em sua maioria, dizem que não. Então, por que o alarme? Porque exatamente a globalização e as políticas neoliberais, muitas vezes, dependem dessa seleção migratória de vidas, dessa categorização de vidas migrantes. Então, sim, os Estados querem que entrem, mas aqueles grupos são selecionados por eles. Então tem os desejáveis e os não desejáveis, que necessitam ser impedidos de entrar. Nisso, vem principalmente aqueles corpos racializados, como as pessoas negras", explica.

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Trabalhistas ou conservadores: no final, 'é o mesmo discurso'

Formulada inicialmente pelo ex-premiê Boris Johnson, que esteve no governo entre 2019 e 2022, o Reino Unido chegou a colocar em prática uma das políticas migratórias mais controversas da Europa em maio deste ano, já no fim da gestão do primeiro-ministro Rishi Sunak: o envio de estrangeiros em situação irregular para Ruanda em meio à crise desencadeada pela chegada de mais de 7,5 mil pessoas ao país pelo Canal da Mancha em pequenos barcos precários no primeiro semestre.
O objetivo da nova medida, que não foi continuada na gestão trabalhista, era "dissuadir" as pessoas de fazerem a travessia. O primeiro voo, que estava previsto para ocorrer no fim de 2022, chegou a ser barrado pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Em contrapartida, Ruanda aceitou receber recursos que poderiam ultrapassar 500 milhões de euros (R$ 2,9 bilhões) em cinco anos para custear a hospedagem de estrangeiros que solicitassem asilo no Reino Unido.
Conforme Sarmiento — que também é coordenadora da Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM), ligada ao Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) —, o governo trabalhista deve tentar abordar a questão de "forma menos belicosa" quando comparado aos conservadores. No entanto, isso não significa que as fronteiras serão abertas, pelo contrário.
"Quer dizer, o atual primeiro-ministro quer aumentar as forças policiais e investir na vigilância das fronteiras. Por quê? Porque quando ele propõe essas medidas, os trabalhistas, que é o novo governo, vão ou pretendem estar dialogando com esse eleitorado indeciso. Mas a questão da impossibilidade de entrada continua. A diferença é que os conservadores têm uma política mais acirrada de fechamento de fronteiras. E os não conservadores, ou os partidos mais ao centro, tratam de aumentar as forças policiais e vigilâncias na fronteira. Então, no final, é um pouco o mesmo discurso, mas midiática ou aparentemente, é mais personalizado", acrescenta.

Qual é o papel do imperialismo na crise migratória?

País cujos registros arqueológicos apontam que já era habitado por sociedades desde 8 mil anos a.C., a Líbia é uma síntese do papel que o imperialismo exerce na crise migratória: só no século XX, após ficar por anos na mão dos italianos, o território foi ocupado por Reino Unido e França, que repartiram a riqueza petrolífera da região. Após a independência, no fim da Segunda Guerra Mundial, contou com vários governos até a morte de Muammar Gaddafi em 2011, situação inclusive influenciada pela presença de grandes potências. Sem Estado, vive uma das maiores tragédias migratórias da atualidade, com elevado número de pessoas tentando chegar de qualquer maneira à Europa.
A professora Érica Sarmiento argumenta que as migrações atuais são geradas por um misto de problemas do passado e do presente.
"Temos políticas coloniais que deixaram marcas muito fortes na sociedade, como o próprio racismo estrutural, a questão do próprio patriarcado, a forma como se vê o saber e a cultura local. Isso acontece na África, na América Latina. Então nós temos uma série de marcas dessa sociedade, dita ocidental e civilizada e que vem colonizar os bárbaros, ou seja, esses corpos racializados. Então sempre foi visto dessa maneira. E claro que esses países, muitos se desenvolvem dentro dessa lógica capitalista, sem um mercado apropriado, sem um desenvolvimento tecnológico, sem acompanhar a produção, então isso obviamente gera muita pobreza nas cidades, uma mão de obra barata, uma exploração enorme nos campos", destaca.
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Brexit e a questão migratória

Já o professor de relações internacionais da ESPM Demetrius Pereira disse à Sputnik Brasil que a associação entre o passado colonialista e a crise migratória no Reino Unido não é colocada no país como fruto uma da outra. Apesar disso, o especialista considera que a entrada de estrangeiros para viver no país foi um dos principais motivos do apoio da população ao Brexit, quando o plebiscito aprovou em 2016 a saída da União Europeia, concretizada apenas em 2020.

"Havia o direito de todos os cidadãos dos países que fazem parte do bloco em residir e trabalhar no Reino Unido. Entre os casos principais, podemos apontar o da Irlanda, que inclusive é colocada como uma ex-colônia britânica na Europa, além de Malta e Chipre. São países que fazem parte da União Europeia e, ao mesmo tempo, também sofreram com o imperialismo britânico [e, posteriormente, com a hipocrisia de seus habitantes serem rejeitados no país]", declarou.

Nos últimos anos, com a pandemia, o conflito na Ucrânia e, principalmente, uma série de decisões problemáticas, como as políticas antirrussas, que aumentaram o custo de vida em toda a Europa, o Reino Unido mergulhou em uma grave crise econômica, com o aumento da inflação e do desemprego. No início do ano, a economia chegou a entrar em recessão técnica.
"E os grandes culpados por essa situação de falta de emprego, na visão de parte da população que inclusive apoiou o Brexit, foram os imigrantes. Isso acaba afetando em mais intensidade esses países [ex-colônias], que são justamente os que mais registram migração para o Reino Unido, até por conta da língua", declara.
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