Panorama internacional

Milei extingue organismo que investigava sequestros de crianças pela ditadura argentina

Por meio de um decreto, o governo argentino fechou nesta semana a Unidade Especial de Investigação do Desaparecimento de Crianças, órgão responsável pela investigação sobre os filhos dos desaparecidos durante a última ditadura militar (1976-1983).
Sputnik
Em entrevista à Sputnik, o ex-secretário de Direitos Humanos Horacio Pietragalla comentou que a medida do governo de Javier Milei representa um ponto de ruptura em relação à política implementada no país desde o retorno da democracia. "É um retrocesso muito forte", frisou.
O argumento central do governo é que a unidade em questão não deveria conduzir investigações, uma vez que essa tarefa é uma atribuição do Poder Judiciário.

"O Poder Executivo, ao criar esta unidade em 2004, e assumir para si a capacidade de realizar investigações sobre fatos criminosos, usurpou a competência do Poder Judiciário e do Ministério Público. Essa sobreposição é grave violação à nossa Constituição que não pode ser permitida. Cabe exclusivamente ao Ministério Público a investigação e promoção de denúncias perante o Poder Judiciário", diz a nota do Ministério da Justiça que anunciou a extinção do órgão.

No entanto, a decisão ocorre em um contexto particular: dias antes do fechamento do organismo, a política argentina foi agitada pela visita de seis legisladores do governo a repressores presos por crimes contra a humanidade.
A oposição não demorou a reagir. O governador da província de Buenos Aires, o peronista Axel Kicillof, anunciou a criação de uma Unidade Provincial Especializada para a busca de pessoas sequestradas durante a última ditadura.
"Na província de Buenos Aires, continuaremos aprofundando as políticas de Memória, Verdade e Justiça", publicou ele em suas redes sociais, acompanhado de uma foto com Estela De Carlotto, a emblemática presidente das Avós da Praça de Maio.
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A Unidade Especial de Investigação do Desaparecimento de Crianças funcionava dentro da Comissão Nacional pelo Direito à Identidade (CONADI). Sem essa ferramenta, o escritório não poderá mais liderar as investigações para avançar na missão iniciada há 46 anos pela emblemática organização Avós da Praça de Maio.
Criada em 1992 a partir da Convenção sobre os Direitos da Criança — que estabelecia o direito à identidade —, a Conadi foi concebida como um organismo governamental para encontrar os filhos dos detidos-desaparecidos. A Unidade Especial de Investigação nasceu em 2004 com a autoridade para acessar todos os arquivos do Estado que pudessem servir para recuperar os netos apropriados pelos militares.
Graças ao trabalho conjunto entre o Estado e a organização Avós da Praça de Maio, 137 pessoas puderam recuperar sua verdadeira identidade. Os organismos de Direitos Humanos estimam que ainda há mais de 300 filhos de desaparecidos que não conhecem sua verdadeira história, em razão do pacto de silêncio estabelecido entre os militares responsáveis por suas apropriações.
Em termos práticos, a função da Conadi consiste em ser um elo com o Banco Nacional de Dados Genéticos, ao qual fornece mais de 80% dos casos que essa entidade recebe. A Unidade Especial de Investigação trabalha com denúncias — particulares ou derivadas das Avós da Praça de Maio — e também com informações fornecidas anonimamente que possam ser úteis para encontrar as pessoas procuradas.
Entre 2019 e 2023, Horacio Pietragalla Corti ocupou o cargo de secretário de Direitos Humanos. Filho de desaparecidos durante a ditadura, ele é um dos netos que conseguiu recuperar sua identidade graças ao trabalho dos organismos de Direitos Humanos.
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Em conversa com a Sputnik, ele destacou que independentemente da tentativa, eles não vão conseguir interromper os julgamentos pelos crimes da ditadura.

"Isso faz parte da batalha cultural que travam contra os organismos de Direitos Humanos, e por isso é um retrocesso muito forte. O que governo está fazendo será uma anedota na história do nosso país. Vamos continuar lutando contra as oscilações de momentos políticos [...] Hoje há mais de 1,1 mil condenados por crimes contra a humanidade e isso deve nos orgulhar", ressaltou Pietragalla.

Em entrevista com a Sputnik, Victoria Montenegro, legisladora da Cidade de Buenos Aires e também neta recuperada graças às Avós da Praça de Maio, destacou que "a Conadi é fundamental para agilizar os trâmites burocráticos que antes levavam anos. Basicamente, ela condensa a aposta do Estado argentino em orientar a restituição de identidades".
"É uma decisão que nos afasta da busca pela verdade e pela justiça, que também é recuperar o direito à identidade. Ainda há centenas de pessoas que merecem acessar sua história", afirmou a deputada portenha.

Batalha cultural

Segundo os dois entrevistados, a medida é inseparável da discussão que o governo está tentando plantar sobre a atuação repressiva do terrorismo de Estado encarnado no regime de atual. De acordo com sua análise, o fechamento da Unidade Especial de Investigação responde ao que o governo chama de "batalha cultural".

"Desde que assumiu, Milei tem buscado provocar retrocessos. Isso ficou evidente no esvaziamento da Secretaria de Direitos Humanos e na demissão de seu pessoal. A visita do governo aos genocidas presos está em sintonia com a postura expressa publicamente pela vice-presidente Victoria Villarruel, que chegou ao seu cargo graças à divulgação de sua mensagem negacionista", afirmou Pietragalla.

Ele defendeu que o atual governo busca proteger os genocidas e é necessário reagir rapidamente.

"As Avós da Praça de Maio percorreram um longo caminho durante esses 41 anos de democracia e não podemos dar um passo para trás como este. O processo de julgamento conduzido pela Argentina é histórico e único no mundo. O que o país fez com aqueles que cometeram os piores crimes que um ser humano pode cometer é realmente exemplar", concluiu Pietragalla.

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