Nesta terça-feira (10), o primeiro debate entre os candidatos à presidência dos EUA, Donald Trump e Kamala Harris, demonstrou a relevância que temas de política externa terão para decidir o resultado das eleições de novembro.
Na ocasião, os candidatos utilizaram temas como o conflito na Ucrânia, a saída dos EUA do Afeganistão e a ascensão da China para delinear a diferença entre suas abordagens. Para analistas ouvidos pela Sputnik Brasil, a tentativa não foi bem-sucedida, e os candidatos demonstraram mais uma vez o amplo consenso que os principais assuntos de política externa gozam entre a elite política norte-americana.
Considerando o amplo espectro de problemas sociais que os EUA enfrentam hoje, desde acesso à moradia, saúde e transporte até epidemia de uso de opioides entre diversos grupos etários da população, o papel da política externa poderia ser relegado ao segundo plano.
Candidato republicano à presidência, ex-presidente Donald Trump, fala durante debate presidencial na Filadélfia, EUA, 10 de setembro de 2024
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No entanto, o esforço de guerra israelense em Gaza catapultou a agenda internacional para o centro das eleições presidenciais norte-americanas, acredita o jornalista e apresentador do Break Through News, Eugene Puryear.
"Acredito que essa campanha talvez seja a mais centrada em política externa dos últimos tempos. O genocídio em Gaza é o responsável por isso, principalmente porque coloca em xeque a possibilidade de Kamala Harris vencer o pleito", disse Puryear à Sputnik Brasil. "Ela não conseguirá obter votos de números significativos de representantes da comunidade árabe e muçulmana dos EUA, além de jovens e outros grupos indignados com o que está acontecendo na questão palestina."
Durante o debate presidencial, a candidata democrata Kamala Harris reafirmou a posição da administração Biden, dizendo que "Israel tem o direito de se defender", ainda que reconhecendo que "muitos palestinos inocentes faleceram". O ex-presidente Donald Trump notou a ausência de Harris na recepção ao líder israelense Benjamin Netanyahu pelo Congresso dos EUA, o que seria um sinal de que ela "odeia Israel" e também "a população árabe".
Polícia retira manifestantes pró-Palestina durante o debate presidencial entre a candidata democrata à presidência, vice-presidente Kamala Harris, e o candidato republicano, ex-presidente Donald Trump, na Filadélfia, EUA, 10 de setembro de 2024
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Outros temas de política externa que poderão ter impacto na escolha do eleitor são o conflito na Ucrânia e a abordagem em relação à China. De acordo com Puryear, o aceno de Trump com possíveis mudanças em relação ao apoio norte-americano à Ucrânia tenta explorar o sentimento antiguerra entre diversos grupos sociais.
"Sabemos que, quando Trump esteve no poder, sua política em relação à Ucrânia era bastante belicosa. Mas recentemente vemos pessoas no Partido Republicano e na direita [norte-americana] criticando o conflito na Ucrânia", considerou Puryear. "Pesquisas mostram que eleitores democratas também estão mudando sua posição em relação à Ucrânia, mas isso não se reflete na política do partido, que é 100% comprometida com essa guerra por procuração."
Durante o debate desta terça (10), Trump defendeu que o fim do conflito na Ucrânia interessa aos EUA, dizendo ser capaz de negociar a paz "ainda antes de assumir a presidência". Já Kamala Harris se comprometeu a liderar o apoio ocidental a Kiev, acusando seu opositor de estar sendo manipulado.
Consenso bipartidário
Para a pesquisadora de pós-doutorado do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da Universidade Tiradentes (UNIT-SE) Lívia Peres Milani, "a grande permanência em política externa é a busca de manutenção da hegemonia". Para atingir esse objetivo, no entanto, Trump e Kamala Harris adotam estratégias diferentes.
"Kamala adere à visão mais convencional nos EUA, de que a continuidade da hegemonia depende da manutenção da ordem liberal", disse Milani à Sputnik Brasil. "Nestes termos, busca-se legitimar o domínio estadunidense com base em um discurso pautado no liberalismo político – especialmente a defesa da democracia e dos direitos humanos como temas universais."
Por outro lado, o candidato republicano Donald Trump promoveria "uma retórica unilateral e busca a manutenção do domínio com base na construção dos meios de força e no nacionalismo econômico". O jornalista norte-americano Eugene Puryear também enxerga muitos traços de consenso bipartidário na agenda de política externa dos EUA.
O presidente do Partido Republicano de São Francisco, John Dennis, assiste ao debate presidencial entre a candidata democrata à presidência, Kamala Harris, e o candidato republicano, Donald Trump, São Francisco, EUA, 10 de setembro de 2024
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"O apoio bipartidário ao genocídio em Gaza é claro como o dia nos EUA. E tem sido assim há décadas no que diz respeito à questão israelo-palestina", declarou Puryear. "Na China, em particular, não há realmente nenhuma diferença entre os dois [partidos]. Ambos estão promovendo uma nova Guerra Fria contra a China e o discurso de que ela é uma grande ameaça que precisa ser enfrentada militarmente."
O consenso bipartidário em relação a potências como China e Rússia está expresso sobretudo nas estratégias de defesa nacional de Trump e Biden. Ambos os documentos enfatizam a necessidade de conter e cercar a China, limitando sua influência global e crescimento econômico, disse o norte-americano. Apesar dos consensos, a pós-doutoranda Milani nota que os candidatos legitimam a sua postura ofensiva em relação à China de formas distintas.
"Para o Partido Democrata importa a caracterização da China como uma ameaça em razão de seu regime político, por isso a sua definição como país autoritário é central à narrativa", disse Milani. "Já Trump busca construir a ideia da China como ameaça econômica, como fonte da desindustrialização nos Estados Unidos – e faz uso de uma retórica mais abertamente xenófoba."
Durante o debate, Donald Trump argumentou que sua administração impôs tarifas pesadas contra produtos chineses, que foram mantidas pela administração Biden-Harris. Em resposta, a candidata democrata acusou seu adversário de manter o acesso chinês a tecnologia de microprocessadores, garantindo o desenvolvimento militar do país.
Consenso financeiro
O amplo entendimento sobre assuntos de política externa entre os partidos norte-americanos é, em grande medida, fundamentado no poder da elite econômica do país, que financia ambos os lados. Nesse sentido, o descontentamento popular com o rumo da diplomacia nacional pode ter impacto limitado no processo eleitoral.
"Os EUA é residência de pessoas extremamente ricas, que estão entrincheiradas em suas posições de poder e não querem que isso mude. Essas são as pessoas que pagam as contas das campanhas eleitorais, que custam bilhões de dólares", notou Puryear. "Quem ganha as eleições é quem tem os maiores doadores. Todo mundo sabe que é assim que funciona."
Neste sentido, o consenso bipartidário sobre assuntos internacionais "não é aleatório, mas advém do fato de que o governo dos EUA é um projeto de 1% da classe bilionária do país, que quer garantir sua dominação global".
A candidata democrata à presidência, a vice-presidente Kamala Harris, fala durante debate presidencial na Filadélfia, EUA, 10 de setembro de 2024
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"As políticas militaristas dos EUA tampouco são aleatórias, mas sim resultado do imperialismo do governo dos EUA", disse Puryear. "Basta olharmos para o contexto da ‘ordem internacional baseada em regras’, que contam com apoio de ambos os partidos. A ideia é basicamente de que os EUA fazem as regras, e o restante deve seguir. E, caso não sigam, serão sancionados, punidos ou invadidos. O que acaba sempre acontecendo no final."
Papel da América Latina
O destaque para assuntos de política externa na campanha eleitoral norte-americana de 2024 não aborda diretamente o papel dos EUA na América Latina, ativo principalmente em questões de embargo a Cuba, segurança no Haiti e no imbróglio entre Venezuela e Guiana.
"Interessante notar que não há propostas, ou uma agenda positiva, para a América Latina. A região apenas entra em pauta em uma visão negativa, quando os temas são crime organizado e migrações. Isto ocorre apesar da crescente importância do eleitorado de ascendência latina, inclusive em estados-chave – a exemplo da Flórida", declarou Milani.
Segundo ela, a região não figura entre os temas prioritários dos partidos norte-americanos, "mas existe uma burocracia especializada na região – no Departamento de Estado, de Defesa, na USAID [Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional] e uma gama de atores privados que atuam e têm interesses nela".
Audiência reage ao debate presidencial entre o candidato republicano à presidência, Donald Trump, e a candidata democrata, Kamala Harris, em comitê latino do Partido Democrata em Miami, EUA, 10 de setembro de 2024
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O contexto de transição geopolítica e a ascensão da multipolaridade, no entanto, poderão levar os EUA a recrudescer seu controle sobre a América Latina, garantindo acesso a recursos e posições estratégicas no continente, acredita Puryear.
"Na minha opinião, isso significa que os imperialistas terão que se concentrar mais na América Latina, que se torna cada vez mais importante para sua compreensão geoestratégica da necessidade de controlar o território, seus recursos e mercados, se eles realmente querem ser capazes de travar uma grande luta contra a China", concluiu o especialista norte-americano.
O debate entre os presidenciáveis norte-americanos foi sediado pela emissora local ABC News na cidade de Filadélfia, com mediação dos jornalistas David Muir e Linsey Davis. A possibilidade de um segundo encontro entre os candidatos está ameaçada, em função de diferenças entre as equipes de campanha sobre o formato de um eventual segundo debate.