Após 25 anos de tratativas, os países do Mercosul e a Comissão Europeia, responsável pelas negociações do bloco europeu, anunciaram que concluíram a versão final do acordo de livre comércio entre ambas as partes. O anúncio foi feito nesta sexta-feira (6) durante a 65ª Cúpula do Mercosul em Montevidéu, no Uruguai.
Além dos presidentes da Argentina, Javier Milei; Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva; Paraguai, Santiago Peña; e Uruguai, Lacalle Pou, o encontro contou ainda com a presença de Ursula von der Leyen, chefe da Comissão Europeia. A Bolívia, que entrou no Mercosul ano passado, ainda precisa adotar alguns protocolos normativos do bloco para aderir ao acordo com a União Europeia (UE).
Os países do Mercosul e da UE representam cerca de 25% da economia mundial e compreendem 718 milhões de pessoas. "O acordo entre o Mercosul e a UE é o maior acordo bilateral de livre comércio do mundo", ressaltou o Palácio do Planalto em nota.
O anúncio, contudo, não significa que o acordo foi assinado e ratificado pelos países. O texto será revisto e traduzido para as 23 línguas de cada país envolvido e será assinado pelo líder de cada governo. Depois, precisa ser ratificado pelo Legislativo de cada país.
No caso da UE, também deve ser aprovado pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho da UE, composto por ministros de cada área dos países.
Segundo a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil), no curto prazo estima-se o aumento de pelo menos US$ 7 bilhões (R$ 42,5 bilhões) nas exportações brasileiras, aumentando a participação da UE no comércio internacional com o Brasil.
"Os 242 produtos que serão desagravados imediatamente ou em quatro anos representam hoje US$ 3,5 bilhões [R$ 21,25 bilhões] e 3,2% das importações europeias selecionadas. Se alcançarmos 10% de participação, o que é viável, dada a desgravação, estamos falando em US$ 7 bilhões em curtíssimo prazo", afirmou o gerente de inteligência de mercado da ApexBrasil, Igor Celeste.
Se por um lado Lula anuncia o encerramento das negociações como uma vitória de seu governo, assim diz também Ursula von der Leyen.
"Hoje, 60 mil empresas exportam para o Mercosul. Dessas, 30 mil são pequenas e médias companhias, que vão se beneficiar dos impostos reduzidos, de procedimentos mais simples e de acesso preferencial às matérias-primas", disse a presidente da Comissão Europeia.
À Sputnik Brasil, analistas questionam se no longo prazo o acordo trará tantos benefícios assim para a economia brasileira.
"É ruim para o Brasil", afirma à reportagem Patrícia Nasser, professora de economia política internacional na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisadora do Observatório de Regionalismo.
"Olhando para além do curto prazo, além de um simples resultado na balança comercial, o acordo vai favorecer um setor que já é forte no Brasil. Para a União Europeia, já exportamos muito produtos agrícolas, mesmo sem o acordo."
No longo prazo, afirma a pesquisadora, o temor é de que o país fique acomodado exportando carne, milho, soja, café e "não tenha estímulos para investir em outros setores que o Brasil está carente há muito tempo".
"Nada contra o setor agrícola do país, que já é bem forte e mecanizado, mas é o momento de o Brasil pensar em fortalecer a indústria, principalmente porque é um setor que daria mais oportunidades de emprego de alta qualificação, com cadeias de valor mais ampliadas", diz Nasser.
Em entrevista à Sputnik Brasil, Gilberto Maringoni, professor de relações internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC), declara uma opinião similar.
"Acordos de livre comércio favorecem sempre o mais forte", alerta o pesquisador. "Livre comércio é sempre a vantagem de quem tem maior produtividade em determinado ramo."
A partir disso, basta ver a disparidade entre as principais atividades econômicas dos países da UE e do Mercosul. São países que fizeram a quarta revolução industrial negociando com países agrícolas, destaca o pesquisador.
No entanto, o maior perigo não é nem que o Brasil continue como agroexportador, mas que o acordo de livre comércio seja danoso para a indústria brasileira existente.
Um dos pontos de contenção por parte dos países do Mercosul era a cláusula de compras governamentais, descrito por Maringoni como "o coração da demanda brasileira". A princípio, o tópico foi resolvido a partir da criação de reservas no Brasil para pequenas e médias empresas e produtores rurais em setores como saúde pública, tecnologia, inovação e desenvolvimento industrial.
Entretanto, "a questão não está clara", define o professor. Ao colocar nas licitações municipais e estaduais empresas europeias com alto grau de produtividade, capazes ainda de fazerem dumping em seus preços, corre-se o risco de eliminar de vez a indústria local.
"Você está colocando aqui empresas que têm condições de derrubar a média e pequena empresa de fornecimento local, do fornecimento regional para o Brasil."
Ruim para o Brasil, mas bom para a Europa?
Se por aqui o acordo beneficiaria o agronegócio e teria o potencial de destruir a indústria brasileira, por lá, ao que tudo aponta, a situação é invertida.
A principal interessada na conclusão do acordo é a Alemanha, que vê sua indústria desabar frente ao alto custo de energia causado pelo conflito na Ucrânia. A situação fica ainda pior com a ascensão de Donald Trump à Casa Branca. O novo presidente dos Estados Unidos deseja reavivar a indústria norte-americana por meio de medidas protecionistas, como tarifas e importações.
Se isso acontecer, a UE se torna cada vez mais secundária para a política comercial dos EUA e, nesse sentido, o acordo com o Mercosul surge como uma boia de salvação para a indústria alemã ao entregar de bandeja um mercado consumidor.
"Nós vamos ser a tábua de salvação da indústria europeia e vamos nos conformar em ser um fazendão?", questiona Maringoni.
Por outro lado, países como França, Polônia e Países Baixos, que possuem um forte lobby do setor agrícola, veem com preocupação a potência agropecuária que é o Brasil. Em especial, o presidente francês, Emmanuel Macron, já se manifestou inúmeras vezes contra o acordo com o Mercosul.
São alegados inúmeros motivos, como regulamentações que os agricultores franceses devem seguir que os brasileiros não, como procedimentos sanitários e o uso de substâncias agrotóxicas e antibióticas que são liberadas no Brasil.
O imbróglio de interesses entre Alemanha e França — as duas maiores economias e as duas maiores populações da UE — deverá ser resolvido no Conselho da UE, entidade que reúne os ministros de cada área dos países. Nele, pelo Tratado de Lisboa, é necessário que 55% dos países, representando 65% da população, sejam a favor de uma legislação para ser aprovada.
Depois disso, o acordo precisa ser aprovado pelo Parlamento Europeu. Para Patrícia Nasser, tantas etapas assim abrem espaço para que a França e seus aliados contrários à invasão dos produtos agropecuários brasileiros protelem e até recusem o acordo. "O caminho é longo."
Esse tempo será essencial para que o país pense que tipo de desenvolvimento econômico quer.
Para o governo brasileiro, a resposta parece clara. Recentemente foram enviadas ao Congresso Nacional medidas de redução dos ganhos do salário mínimo, do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e do abono salarial. "Ou seja, de redução do poder de compra da população", afirma Maringoni.
"Há um movimento explícito de redução do mercado interno e de consolidar o Brasil como uma economia agro-primária exportadora."