De pária a guardião da Eurásia: qual o papel do Talibã na luta contra o terrorismo?
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas afirmam que grupo governante do Afeganistão é um dos principais atores no combate aos terroristas do Estado Islâmico-Khorasan, responsável pelo ataque ao Crocus City Hall, em março de 2024.
SputnikO
Talibã reassumiu o controle do Afeganistão em agosto de 2021, quando as tropas dos Estados Unidos deixaram o país asiático após 20 anos de ocupação, em uma operação de retirada considerada atrapalhada e mal executada.
Desde então, o grupo tenta
alcançar legitimidade perante a comunidade internacional, em busca de consolidação do governo Talibã e de
distanciamento do extremismo de outrora. Entre as poucas nações que reconhecem a legitimidade dos atuais mandatários afegãos
está a Rússia.
Especialistas entrevistados pela Sputnik Brasil explicaram que o Talibã atualmente tem grande importância para a segurança da Eurásia, em especial no combate ao Estado Islâmico-Khorasan (El-K), um ramo do Daesh (organização terrorista proibida na Rússia e em vários outros países) que atua na Ásia Central.
O El-K, que surgiu como um braço do Estado Islâmico ao longo da década passada, ganhou maior notoriedade ao assumir a autoria de um atentado em Moscou, na Rússia, em 2024. O
ataque ao Crocus City Hall deixou ao menos 145 mortos e outras centenas de feridos.
A internacionalista e cientista militar Amanda Marini acredita que o reconhecimento do Talibã como governo legítimo por parte de Moscou está diretamente atrelado ao combate do El-K. A autora do livro "Quando a guerra não tem fim" afirma que o episódio no Crocus City Hall "reforçou a necessidade de alianças pragmáticas para enfrentar o terrorismo".
"Para Moscou, o Talibã, apesar de estar sujeito a sanções internacionais e carregar um histórico controverso, é atualmente considerado uma peça fundamental na contenção territorial e ideológica do EI-K. O grupo extremista tem ampliado sua presença nas províncias do leste e nordeste do Afeganistão, especialmente nas regiões fronteiriças com o Tajiquistão."
Marini também destaca que a Rússia conta com uma quantidade significativa de muçulmanos. Segundo o instituto de pesquisa russo VCIOM, estima-se que ao menos 7% dos russos seguem o Islã, o que obriga o Kremlin a lidar com "questões envolvendo radicalismo".
Nesse sentido, diz a especialista, a estratégia russa não se baseia em uma oposição à religião em si, mas na tentativa de conter atores que distorcem suas bases para justificar ações terroristas com fins políticos.
5 de dezembro 2024, 16:20
Já Pedro Martins, mestre em ciências militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), chama atenção para três pontos importantes do Talibã na segurança da Eurásia: controle local, combate ao tráfico e enfrentamento ao terrorismo.
Em primeiro lugar, o governo do Talibã evita que o Afeganistão fique internamente desestabilizado. Já em um segundo momento, por professar uma vertente conservadora do Islã, ele atua na segurança euroasiática ao combater o tráfico de drogas, sobretudo de drogas à base de ópio.
Desde que retomou o poder, a produção de ópio no Afeganistão — que durante a ocupação estadunidense produzia mais de 90% da heroína mundial — caiu em 95% devido à proibição instituída pelo grupo religioso.
"Por fim, ele desempenha um papel de combate a grupos islâmicos rivais que adotam táticas terroristas, impedindo que eles se espalhem pela região."
Entretanto, assim como Marini, Martins ressalta que o conservadorismo do Talibã afasta as chances de o grupo ser
reconhecido como legítimo por um maior conglomerado de países, em especial por
governos do Ocidente.
"O mais provável é que os países mantenham relações, de fato, com o novo governo, na prática, reconhecendo-o, mas sem fazer isso de forma pública, porque o desgaste de reconhecer o governo de um grupo tão conservador pode ser grande, sobretudo para países ocidentais."
O Talibã atual é, de fato, novo?
Embora haja dúvidas quanto à garantia de direitos iguais para mulheres ou liberdade para a imprensa, o Talibã começa a abraçar outras etnias que não só os pashtuns, como os tajiques, uzbeques e hazaras, que agora fazem parte do governo.
No entanto, os cargos de maior importância seguem nas mãos dos pashtuns, que formam cerca de 90% da administração afegã, informa Marini.
"Apesar de maior diversidade étnica, o Talibã de hoje não é o mesmo grupo homogêneo de 30 anos atrás. Tornou-se mais multifacetado, mas a liderança e o controle continuam firmemente nas mãos dos pashtuns, sem uma estrutura de 'alto escalão' inclusiva ou de poder compartilhado."
Por sua vez, Martins explica que a nova pluralidade, ainda que longe do ideal, serve como argumento de legitimação dentro da nova fase do Talibã. "Muitos países da Ásia Central condicionaram o reconhecimento do novo governo do Talibã ao conferir mais papel aos outros grupos étnicos em seu governo."
Para o mestre em ciências militares, ainda que o Afeganistão não seja uma potência militar regional ou diplomática tradicional, o país se torna um dos principais personagens da Eurásia pelas "dimensões de controle territorial e contenção do jihadismo transnacional".
"A influência [do Afeganistão] está mais ligada à geografia, à estabilidade relativa que proporciona e à lógica pragmática dos interesses de seus interlocutores do que a qualquer estrutura institucional formal de segurança coletiva."
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