Tanto econômica quanto diplomaticamente, as relações entre Rússia e China são cada vez mais "maduras" e fortes, conforme menções das próprias chancelarias dos países. Muito mais do que nas declarações de autoridades e lideranças, os números mostram a cooperação cada vez mais intensa: mais de 80% das transações financeiras entre Moscou e Pequim são realizadas em moedas locais, em substituição ao dólar, enquanto o comércio bilateral atingiu recorde no ano passado, com saldo de mais de US$ 245 bilhões (R$ 1,3 trilhão) e alta de 30% em relação a 2023.
O pesquisador do Centro de Investigação em Rússia, Eurásia e Espaço Pós-Soviético (CIRE) Guilherme Jeremias Conceição relata ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, que há uma reconfiguração "silenciosa e bastante profunda" do tabuleiro geopolítico da Eurásia diante do aprofundamento das relações entre os dois países, que também são as principais potências econômicas e militares da região.
"A aliança entre China e Rússia, que até o início da década era vista com certo ceticismo, vem ganhando densidade justamente no vácuo deixado pela influência ocidental na região. Então, desde o conflito da Ucrânia, a Rússia passou a depender ainda mais da China, tanto comercial quanto diplomaticamente. E, na prática, essa aproximação está deslocando, digamos assim, o centro da gravidade geopolítica da Eurásia para longe dos Estados Unidos e da OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte], com impactos visíveis na Ásia Central", enfatiza, ao lembrar que a região é justamente onde os dois países atuam de forma mais coordenada para "conter o avanço ocidental sem necessariamente ir a um confronto direto".
Apesar de a aproximação ter se intensificado nos últimos anos, o pesquisador lembra que esse alinhamento na política externa e no cenário internacional é resultado da revisão de uma postura estratégica anterior.
"Para além de ser uma reação aos desafios impostos pela crise ucraniana de 2022, há uma estratégia mais ampla. A Rússia percebeu que o cenário mais adequado era se projetar dessa forma depois que inúmeras tentativas e tratativas com o Ocidente foram frustradas. Então envolve também entender o espaço asiático como região mais propícia para esse tipo de projeção, principalmente a partir de 2014, após os eventos da Crimeia", detalha.
Um dos exemplos do processo é justamente a fundação da União Econômica Eurasiática (UEE) em janeiro de 2015, após encontro entre os líderes de Belarus, Cazaquistão e Rússia. Mais tarde, o grupo passou a contar com Armênia e Quirguistão e, embora a China não seja um país-membro, tem cooperação ativa, principalmente a partir da Iniciativa Cinturão e Rota e, ainda, acordos de livre comércio.
"A Rússia vai começar a flertar muito mais com esse discurso asiático de que faz parte não apenas do território europeu, porque possui de fato uma parcela territorial na Europa, mas que é um país eurasiático. Então ela possui grande parte do seu território na Ásia e, portanto, deveria assumir para si a responsabilidade de se projetar nesse território", resume.
Sanções ocidentais fortaleceram parceria com a China?
Em quase três anos, a Rússia foi alvo de mais de 30 mil sanções movidas pelo Ocidente, com o intuito de estrangular a economia russa, um número até então nunca visto na história. Contudo, as medidas fizeram o contrário e estimularam uma nova fase de transformação interna: média de crescimento do produto interno bruto (PIB) de mais de 4% e desemprego abaixo de 3%, mesmo em meio à operação militar especial na Ucrânia. Muitos desses números, segundo o especialista, foram possíveis graças à parceria com a China e os demais países do Sul Global, como os membros do BRICS.
"Esse laço vem se traduzindo em novas infraestruturas e projetos políticos. O que antes era uma relação até desconfiada, agora mostra sinais de maturidade em um projeto multipolar, ainda que esteja em nível inicial […]. Há uma integração econômica muito grande", afirma, citando o yuan como a moeda mais negociada na Bolsa de Moscou, superando o euro e o dólar.
Parceria energética: estruturas entre China e Rússia em ampliação desde 2006
Há quase 20 anos era iniciada a construção de um oleoduto que ligava a Rússia à China como parte de uma nova estratégia para atender ao mercado chinês. Em 2012, segundo a especialista em BRICS, analista de energia e cientista política Milena Megre, foi firmado também um contrato de longo prazo entre os dois países para fornecimento de petróleo.
"Vimos o que aconteceu com a Europa, que desde a década de 1960, quando ainda era a União Soviética, iniciou a construção tanto de oleodutos quanto gasodutos e, assim, criando uma interdependência energética entre os dois [mais de 50% da exportação russa era para a Europa]. Já com a China, essa relação foi sendo construída de maneira lenta e cautelosa", frisa ao podcast Mundioka.
Mesmo com essa aproximação, inclusive na área energética, a especialista pontua que tanto China quanto Rússia apostam na diversificação dos parceiros, o que também é reflexo da defesa do multilateralismo.
"Vemos que os países do mundo não ocidental têm uma forma diferente de negociar. Nunca é tentando visar que o outro tenha uma dependência. O que é bom é um parceiro independente e uma relação baseada no ganha-ganha. Então eu vejo Rússia e China com esse tipo de relação."
A cientista política acredita ainda que essa característica de Moscou e Pequim também se reflete na tentativa de fortalecer grupos de cooperação internacional dos quais ambos fazem parte, como a Organização para a Cooperação de Xangai (OCX) e o próprio BRICS, sem necessariamente querer se contrapor com outros fóruns, mas oferecer uma alternativa.