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'Encruzilhada civilizatória': Brasil deve enfrentar EUA para regulamentar redes e proteger jovens?

Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas afirmaram que pressão de Washington não deve ser obstáculo para que Congresso Nacional vote projetos que auxiliem na proteção infanto-juvenil na Internet.
Sputnik
O vídeo-denúncia viral do youtuber Felca sobre a adultização de jovens nas redes sociais alcançou mais de 45 milhões de visualizações em 12 dias, levantando um debate nacional a respeito da proteção e exposição infanto-juvenil na Internet.
A urgência criada para a discussão do assunto fez com que a Câmara dos Deputados colocasse em pauta um projeto de lei, aprovado no Senado no ano passado, sobre a adultização de crianças e adolescentes. O texto prevê, entre outros pontos, a responsabilização das redes sociais sobre conteúdos similares ao denunciado por Felca.
Paralelamente a essa discussão nacional, o Brasil sofre pressão do governo e das empresas dos Estados Unidos por buscar a regulamentação das plataformas digitais. A Meta (proibida na Rússia por ter atividades extremistas), por exemplo, disse que o país quer uma "censura privada", enquanto o Google declarou que a responsabilização das redes sociais não trará o impacto desejado.
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas afirmam que o Brasil deve enfrentar os EUA na regulamentação das redes sociais, garantindo que os direitos estabelecidos na Constituição sejam cumpridos também na Internet.
O sociólogo e professor do Centro de Ciências Sociais e Aplicadas da Universidade Presbiteriana Mackenzie Rogério Baptistini afirma que o governo norte-americano tentará defender os interesses corporativos das big techs e que isso não deveria ser impeditivo para que o Congresso Nacional promova as próprias leis.

"O Brasil, ao propor sua própria regulação, segue o exemplo de outras democracias — como a União Europeia com o Digital Services Act [Lei de Serviços Digitais, em tradução livre] — e reafirma sua soberania. Em última instância, a pergunta é: quem define as regras do espaço digital dentro do território nacional?"

Baptistini explica que a regulamentação representaria, automaticamente, uma "ameaça direta" ao ecossistema das redes sociais, que tem como um dos principais modelos de negócio a exploração de dados dos usuários para publicidade direcionada. Em uma área economicamente fértil como a Internet, o especialista reforça que é preciso preservar os direitos dos brasileiros.

"A regulamentação das plataformas digitais não é apenas uma pauta técnica, ela representa uma encruzilhada civilizatória. O que está em disputa é a capacidade do Estado brasileiro de exercer sua soberania no domínio digital, protegendo os direitos de seus cidadãos."

O professor do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (Inest/UFF) Thomas Ferdinand Heye explica que uma regulamentação criaria regras sobre privacidade, moderação de conteúdo e transparência algorítmica, minando parte da vantagem competitiva que as big techs têm no setor. Regras como essas em diversos países farão com que o custo operacional dessas empresas cresça em áreas como compliance.
"Se o Brasil conseguir implementar com sucesso uma regulamentação abrangente das plataformas digitais, isso pode inspirar outros países a seguir o mesmo caminho, criando um efeito dominó que resultaria em um mosaico regulatório global complexo e custoso para as empresas americanas."
Outro ponto de destaque posto por Heye é o soft power digital que essas empresas trazem para os Estados Unidos ao redor do mundo. Dessa forma, para Washington, é necessário manter o status quo no ambiente digital.
"Essa tensão continuará enquanto houver esse conflito fundamental entre a busca por soberania digital que países como o Brasil perseguem e os interesses estratégicos americanos no setor tecnológico global."
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Como regulamentar sem agravar?

Brasil e Estados Unidos vivem um dos piores momentos diplomáticos entre os dois países desde o anúncio das tarifas de 50% sobre exportações brasileiras, anunciadas pelo presidente Donald Trump. Um dos motivos para o tarifaço, inclusive, foram os "ataques contínuos" brasileiros às "atividades comerciais digitais" de empresas estadunidenses.
Para Baptistini, um avanço das pautas de regulamentação das redes sociais culminará em eventuais retaliações de Washington a Brasília, em especial, se for levado em consideração o histórico recente das ações contra um dos principais personagens nos atritos com as big techs: o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes.
"Se o Congresso brasileiro avançar na regulamentação das redes, é possível que haja reações por parte de um eventual governo Trump, sobretudo considerando o histórico de tensões anteriores. Quando o STF passou a investigar redes de desinformação e ataques antidemocráticos, houve retaliações pontuais com base na Lei Magnitsky."
Heye, por sua vez, destaca que existe a possibilidade de as pressões externas afligirem os congressistas brasileiros antes mesmo de os projetos de regulamentação serem colocados em pauta, provocando a paralisação das discussões acerca do tema.

"Parlamentares podem pedir mais tempo para 'estudar as implicações internacionais' do projeto, podem surgir propostas de emendas que descaracterizem completamente a regulamentação ou pode haver uma campanha coordenada para adiar a votação indefinidamente."

Embora a resistência estrangeira pareça inevitável, é possível buscar meios para tornar o processo de aprovação desses projetos mais brando. Segundo Baptistini, França e Índia, por exemplo, impuseram regras às big techs sem comprometer relações.
"Proteger crianças e adolescentes no ambiente digital é uma obrigação constitucional do Estado brasileiro — e pode perfeitamente ser conciliada com uma diplomacia responsável e pragmática com os Estados Unidos ou qualquer outro parceiro internacional. O segredo está em ancorar essa agenda em princípios universais de direitos humanos e em boas práticas internacionais, como as que já vêm sendo adotadas na União Europeia."
Heye vai além, destaca que a proteção infanto-juvenil na Internet também é uma preocupação norte-americana e sugere que este pode ser um ponto de partida para melhorar a relação diplomática entre as duas nações.

"A proteção de crianças e adolescentes on-line é uma das poucas áreas onde existe convergência entre Brasil e Estados Unidos. Mesmo os defensores mais ferrenhos da liberdade digital americana reconhecem que menores precisam de proteções especiais no ambiente on-line. Nos próprios EUA, há crescente pressão bipartidária no Congresso para regulamentar plataformas, especificamente no que se refere à proteção infantil."

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