Do Irã à Arábia Saudita, do Egito aos Emirados Árabes Unidos, há uma convergência limitada: os países compartilham a religião islâmica e têm influência sobre todo o Oriente Médio e Norte da África, mas seus respectivos papéis na região são enxergados distintamente. Isso criou tensões ao longo dos tempos, que, conforme Fernando Goulart, pesquisador do Núcleo de Estudos dos Países BRICS (NuBRICS), da Universidade Federal Fluminense (UFF), foram muito exploradas pelo Ocidente, principalmente os Estados Unidos, a seu favor.
Como exemplo, o especialista cita ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, a manipulação da Árabia Saudita a partir de 1979, quando, diante da falta de lastro para a emissão de dólares no mundo, Washington usou a instalação de bases militares em território árabe para contornar a dificuldade — sob a promessa de proteção, o país passaria a atrelar a venda do barril de petróleo à moeda. Isso aumentou as tensões com o Irã, que viu a militarização como uma ameaça.
"É quando passamos a conhecer o petrodólar, e isso foi uma jogada de mestre, já que o petróleo é, de longe, a maior commodity dos últimos 100 anos no mundo. Os Estados Unidos geram dólar e todos os países precisam comprar na moeda o produto. Para isso, precisam de reservas na moeda norte-americana, para investimento também, e isso fica se retroalimentando. Washington conseguiu explorar a geopolítica do dólar, até que, já no século XXI, com o BRICS, você começa a ter uma primeira fissura nessa armadura", argumenta.
Aliado a isso, há a presença no grupo dos Emirados Árabes Unidos, que, conforme Goulart, estão em um meio-termo entre o costume iraniano e o saudita. Ainda há o Egito, país que após a Primavera Árabe viu a mistura entre governo e o Islã ficar mais latente.
"É aí que você tem quatro posições diferentes de política externa, o que gerou também muitos conflitos por procuração no Oriente Médio. Você tem, por exemplo, o Irã patrocinando grupos como Hezbollah, Hamas e houthis […]. Ao mesmo tempo, nunca houve um conflito direto entre o Irã, que é a grande potência xiita, e a Arábia Saudita, que é a grande potência sunita", afirma.
O especialista cita que, apesar dessas divergências históricas, o BRICS conseguiu juntar em um mesmo grupo todos esses países, em prol da união em torno do desenvolvimento do Sul Global. Para isso, houve grandes esforços das diplomacias da China e do Brasil, acrescenta Goulart.
"O sucesso da nossa diplomacia vem muito da política externa independente e da não intervenção, do respeito à autodeterminação dos povos. Os dois países têm muito esse caráter agregador, que faz com que nações com profundas diferenças consigam sentar e encontrar denominadores comuns", resume.
BRICS terá sucesso em reduzir as tensões no Oriente Médio?
Para o especialista, o BRICS pode ter sucesso em uma difícil missão, que é fazer com que as diferenças entre sunitas e xiitas fiquem totalmente em segundo plano, para que, assim, seus representantes atuem de forma conjunta na melhoria econômica de todo o Oriente Médio.
"Temos que lembrar que França, Reino Unido e Alemanha se mataram por séculos e, hoje em dia, tirando Londres após o Brexit, estão unidos em um mesmo bloco. Ao entender esses pontos de comum acordo do Sul Global, é possível equalizar as animosidades e inclusive fazer com que a cooperação entre essas nações ajude no processo de paz onde hoje há conflitos no mundo islâmico, como Palestina, Iêmen, Sahel, Síria."
Além disso, o especialista lembra que por décadas a região foi muito influenciada pelas potências do G7 (Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido), em que a máxima é dividir os continentes para conquistar seu espaço.
"A visão do BRICS é diferente. O que a gente quer é criar uma aliança que permita que todos ganhem. E eu acho que, se esses países entenderem isso, será possível distensionar a região, ter cada vez menos guerras por procuração e conseguir, diplomaticamente, dialogar para promover a paz. É uma esperança muito otimista, mas a gente trabalha sempre para um mundo melhor."
União do mundo islâmico em prol da Palestina
A principal tensão no Oriente Médio, e que quase levou a uma guerra total entre Irã e Israel, duas das principais potências militares da região, segue cada vez mais forte, na Faixa de Gaza. Enquanto o governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu intensifica os ataques na já devastada região, que sofre com a guerra há quase dois anos, o BRICS tem se tornado uma vitrine para os países-membros atuarem de forma conjunta para condenar o que ocorre com a Palestina.
É o que defende ao podcast Mundioka o especialista em direito internacional e professor da Universidade de Itaúna (UIT) Wiliander Salomão. "Quando se trata de conflitos de Israel na Palestina, é comum que todos os países muçulmanos se unam para condenar os ataques e adotar uma postura diplomática pelo fim da violência e pela criação do Estado palestino", diz.
Aliado a isso, o especialista lembra que o ataque israelense contra alvos do Hamas em Doha, capital do Catar, só aumenta o afastamento do mundo islâmico de Tel Aviv. "O Catar tem sido um mediador do movimento palestino, já que Israel não dialoga com ele. Então bombardear um agente dessa importância é uma atitude impensável e que piora ainda mais a situação."
Ao deixar essa função, Israel perde a capacidade de dialogar com o mundo islâmico, apesar de ter relações diplomáticas com Jordânia e Emirados Árabes Unidos, afirma o professor. "Depois dessa situação em Gaza e do bombardeio em Doha, os países árabes se uniram em uma conferência em protesto contra Israel. Isso só enfraquece Tel Aviv, que fica cada vez mais distante do mundo islâmico, e fortalece a união entre eles. Se bombardeia o Catar, um mediador, ressuscita o temor de que pode começar a bombardear a Arábia Saudita, por exemplo", finaliza.