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Cinema brasileiro: o poder é 'soft', mas obstáculos são 'hard'

A indústria cinematográfica brasileira vem experimentando uma maré de reconhecimento internacional, com premiações de filmes e atores brasileiros em festivais mundo afora.
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Após o sucesso do filme "Ainda estou aqui", do diretor Walter Salles, que levou o prêmio de melhor roteiro no Festival de Veneza, garantiu o Globo de Ouro de Melhor Atriz de Drama para Fernanda Torres e ainda venceu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, agora chegou a vez do filme "O agente secreto", do diretor Kleber Mendonça Filho, brilhar nas salas de cinema ao redor do mundo.
O ator Wagner Moura foi premiado como Melhor Ator em Cannes, e Kleber Mendonça Filho levou o troféu de Melhor Direção pelo longa, ambientado durante a ditadura militar brasileira. Além disso, o filme foi escolhido para representar o Brasil na disputa por uma vaga no Oscar 2026.
A obra ainda teve direito à sessão recente no Palácio da Alvorada, com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
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'Ainda estou aqui' mostra que cinema é 'poderoso' soft power do Brasil, mas ainda negligenciado
Não é a primeira vez que o audiovisual brasileiro ultrapassa fronteiras ao longo da história contemporânea, apesar de desafios como a distribuição de filmes e a falta de investimentos sustentáveis no setor.
E, apesar de seu poder de aquecer o mercado de trabalho e elevar a imagem do país na opinião pública global, o setor pena para alcançar o potencial merecido, sendo as conquistas e os avanços oriundos sobretudo de esforços pontuais e muita criatividade, segundo especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil.
A falta de previsibilidade orçamentária é o principal entrave, na opinião do cineasta João Amorim, sócio-fundador da Amorim Filmes:

"Vivemos presos a editais sem calendário definido, o que inviabiliza o planejamento e afasta investidores. Falta também fluxo contínuo de produção: canais e plataformas querem exibir conteúdos independentes de forma recorrente, mas dependem de editais burocráticos", comentou.

De acordo com o cineasta, países que investem no setor como política de Estado colhem altos lucros materiais e simbólicos. "Nos EUA, 44% das pessoas escolhem um destino turístico a partir de filmes ou séries. Isso mostra o impacto direto do audiovisual na diplomacia cultural", exemplificou.
No caso brasileiro, a projeção da imagem nacional através de obras que "valorizam nossa diversidade, cultura e paisagens" não só atrai turistas, diz Amorim, "mas também fortalece nossa influência política e simbólica".

"Filmes como 'Ainda estou aqui', que vêm sendo exibidos em dezenas de festivais internacionais, mostram o potencial transformador dessa presença global."

Amorim frisou que o sucesso do setor exige estratégia integrada e visão industrial, com incentivos fiscais específicos, participação em festivais e mercados internacionais, e suporte robusto à comercialização dos filmes.
O professor titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Rafael dos Santos aponta à Sputnik Brasil que, durante a história recente do Brasil, foram muitos os entraves ao desenvolvimento de uma política brasileira de audiovisual.
"A gente tem sempre uma interrupção das políticas públicas. Existe sempre alguma trava: a extinção da Embrafilme com o Plano Collor; depois, com a criação da Ancine; a gente teve agora os anos Bolsonaro, que foram terríveis…"

"Se a gente for pegar o histórico do cinema brasileiro e do audiovisual brasileiro, sobretudo voltado para a coisa do soft power […], a gente não tem uma continuidade", comentou Santos.

Sem instrumentos permanentes, fundos contínuos e políticas que estimulem o desenvolvimento de diferentes segmentos, dificilmente será possível ampliar a presença internacional do cinema brasileiro, opinaram os especialistas.
Hoje as produções brasileiras são quase exclusivamente dependentes do Fundo Setorial do Audiovisual, lembra Amorim. Sem o primeiro aporte do fundo, segundo ele, não entram novos investidores, o que gera insegurança e constrangimentos em parcerias internacionais.
"Também há concentração de recursos nas grandes produtoras e poucos incentivos para médias e novas empresas", criticou.
Segundo o cineasta, antes a Embrafilme cumpria esse papel de financiamento, que poderia ser incorporado à atuação da Ancine se o audiovisual fosse reconhecido como setor estratégico da economia.

"O audiovisual precisa ser tratado como indústria, com visão estratégica — como fizeram Coreia do Sul e China, que transformaram cultura em parte relevante do PIB."

Ingresso salgado

Outro empecilho para o avanço do cinema brasileiro é o preço do ingresso, que, na opinião de Santos, deveria ser subsidiado para filmes nacionais, de modo a permitir um maior público, em específico das classes populares — "as que mais consomem conteúdo nacional".

"Precisamos de uma política, também, de formação de público, formação de plateia, com um trabalho sólido nas escolas. Agora tem a lei que obriga a exibição de conteúdo nacional nas escolas, tem que botar essa lei para valer, mas não pode ser só exibir o filme por exibir; tem que exibir estimulando as pessoas a ter um gosto estético."

Para os entrevistados, há uma oportunidade para a produção nacional na regulação das plataformas de streaming.
O marco legal não só garantiria cotas para a produção nacional e que os direitos autorais permanecessem com os criadores brasileiros, mas também o recolhimento de receitas e um "fomento direto bem razoável", à parte do fomento indireto da Lei do Audiovisual.
Isso minimizaria a instabilidade do financiamento público, com entrada de recursos constantes para o fundo setorial e investimento contínuo na infraestrutura e em equipamentos, estúdios e centros de pós-produção.
Entretanto, a sociedade civil deve participar mais da formulação e do planejamento das políticas públicas. "Isso faz com que ela se sinta corresponsável pelo destino desse setor", explicou Santos.

"Então a gente tem que democratizar mais a participação popular na formulação das políticas públicas de cultura de forma geral e de audiovisual de forma específica, criando mecanismos de envolvimento da sociedade civil para que, quando tentarem de novo censurar ou acabar com a continuidade das políticas públicas, a gente tenha uma resistência da sociedade civil."

Nesse sentido, enfatizou, políticas estratégicas também precisam fortalecer o conteúdo pré-escolar, integrado ao Ministério da Educação, com exibição regular de filmes nacionais nas escolas, promovendo tanto formação de público quanto de cidadania.

BRICS

Os especialistas destacaram que acordos de coprodução e difusão com países do Sul Global são uma estratégia mais que acertada do atual governo brasileiro, que precisa ser incrementada, especialmente dentro do BRICS, que poderia criar um fundo dedicado à produção e circulação audiovisual.
"Isso ampliaria o intercâmbio cultural, permitindo que filmes brasileiros tivessem espaço em países parceiros sem precisar competir em condições desiguais com os produtos norte-americanos", afirmou Amorim.
Ainda segundo Amorim, o BRICS hoje cumpre um papel que as Nações Unidas deixaram de exercer: o de fórum global de diálogo e diversidade.
"O audiovisual pode e deve ser um eixo central dessa cooperação. Tenho vivido isso com as coproduções que estamos realizando com a China. Esses projetos mostram o potencial de integração cultural, tecnológica e econômica entre países do Sul Global", afirmou.

"O mesmo vale para Rússia, Índia, África do Sul e os novos membros […], todos com grandes indústrias de cinema. Essa colaboração pode reequilibrar o mapa cultural mundial e romper a hegemonia dos modelos de Hollywood."

Já Santos destacou a necessidade de atuação mais pujante dos ministérios das Relações Exteriores, da Cultura e da Casa Civil, com acordos multilaterais de conteúdo audiovisual, aproveitando o BRICS.
"A gente tem acordo de coprodução com vários países do mundo, então [deve-se] estabelecer acordos de coprodução, ter uma atuação mais forte do Itamaraty dentro disso e estabelecer parcerias com empresas internacionais."
Dentro do grupo, os entrevistados destacaram Índia e China como grandes mercados de audiovisual e de cinema, seguidos da Rússia, com "rica herança da produção cinematográfica da ex-União Soviética".
O professor também chamou a atenção para investimentos articulados nas universidades estrangeiras, entre outros lugares de formação de opinião, exibindo filmes e facilitando a distribuição de títulos brasileiros nesses países, em embaixadas e centros culturais voltados para a cultura brasileira, entre outros pontos estratégicos.

"Nesses países, mais a África do Sul e os outros países do BRICS também, já existe um conhecimento do conteúdo audiovisual brasileiro, sobretudo pelas telenovelas, o que pode facilitar o consumo, também, do nosso cinema", lembrou Santos.

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