A Associação Brasileira para o Desenvolvimento De Atividades Nucleares (ABDAN) foi convidada a assumir a liderança do novo Grupo de Trabalho de Financiamento para Projetos Nucleares no âmbito do BRICS, estrutura idealizada para formular diretrizes e instrumentos financeiros voltados à expansão segura e sustentável da energia nuclear entre os países membros.
Além disso, analisar práticas regulatórias e modelos já consolidados de financiamento nuclear e preparar recomendações técnicas para auxiliar bancos de desenvolvimento, agências e instituições financeiras internacionais que estejam interessadas em investir neste setor.
O desenvolvimento nuclear em países com pouca tradição no campo é visto com desconfiança por países com acesso a armamentos nucleares, com estes temendo que outros países tenham a possibilidade de ter um arsenal nuclear.
Contudo, as tecnologias nucleares possuem múltiplas aplicações pacíficas além da produção de dispositivos atômicos, como geração de energia, medicina, agricultura e pesquisa científica. Portanto, o regime de não proliferação nuclear causou uma desigualdade tecnológica em países em desenvolvimento, como o Brasil.
A Sputnik Brasil entrevistou Celso Cunha, presidente da ABDAN, para saber como foi a escolha para liderar esse grupo de trabalho. Segundo Cunha, a escolha foi a partir da iniciativa brasileira em propor um trabalho direcionado a questões de planejamento financeiro. Ele frisa que o grupo de trabalho é um fórum de empresas que estão nos países do BRICS+, criado há dois anos durante uma reunião na Rússia, em Moscou.
Cunha conta que a expectativa é que o grupo de trabalho inicie os trabalhos em março de 2026, com a ABDAN coordenando as empresas participantes e definindo o foco dessa coordenação.
"Se ela vai envolver somente articulação técnica, formulação técnica, se vai ter a formulação política, vai ter interlocução com instituições financeiras e todas as outras frentes", explica o presidente. "Então, isso ainda não está estabelecido, a partir do momento que se estabeleça o plano de trabalho, e ele seja aprovado, nós vamos poder estar atuando."
Sobre como a associação pode exercer essa liderança na prática, Cunha diz que a ABDAN buscará coesão entre os membros do grupo de trabalho, agregando conhecimentos do programa nuclear brasileiro e políticas desenvolvidas no Brasil com outros países, destacando o uso de tecnologia nuclear para produzir hidrogênio e sua importância na transição energética.
"Acredito firmemente que o grande elemento, como estamos falando do BRICS +, é a gente fomentar a tecnologia nuclear e criar políticas que possam fomentar a tecnologia nuclear".
Para Astrid Cazalbon, doutoranda em relações internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Segurança Energética (GESENE) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), a iniciativa de cooperação e financiamento nuclear no âmbito do BRICS deve ser compreendida dentro de uma transformação mais ampla da ordem internacional.
Segundo ela, o equilíbrio entre as potências nucleares já vem se alterando em função das pressões ambientais, da transição energética e das mudanças geopolíticas em curso, e a plataforma de energia nuclear do BRICS surge como uma forma de contestação à ordem historicamente dominada pelas potências nucleares ocidentais.
Cazalbon lembra que a Declaração de Kazan, de 2024, reafirma o compromisso do BRICS com a construção de uma ordem mundial mais justa e equilibrada, baseada na cooperação, no desenvolvimento sustentável e na reforma das instituições globais, de modo a representar melhor os interesses dos países emergentes.
"Nesse sentido, iniciativas de cooperação e financiamento nuclear podem reduzir parcialmente assimetrias ao permitir que países que historicamente tiveram acesso limitado às tecnologias nucleares desenvolvam seus próprios setores, sobretudo no uso civil e em aplicações energéticas e não energéticas", explica.
Na avaliação da pesquisadora, esse movimento não implica necessariamente uma mudança direta no equilíbrio das potências nucleares militares, mas sim um reequilíbrio no acesso a capacidades tecnológicas e energéticas estratégicas. O acesso à energia nuclear, à diversificação de matrizes e a tecnologias críticas pode se traduzir em maior capacidade de geração de riqueza e de construção de poder nacional, desde que inserido em uma estratégia de longo prazo.
"Para países como o Brasil, os desafios permanecem não apenas no acesso ao financiamento, mas também na regulação e na construção de um projeto energético e tecnológico autônomo de longo prazo, razão pela qual a atuação do país — inclusive por meio da ABDAN — é fundamental para avançar nesse processo."