Na próxima semana, o primeiro-ministro chinês, Li Keqiang, virá ao Brasil para apresentar um plano de investimentos no valor de US$ 50 bilhões, para obras de infraestrutura. Entre essas obras, destaca-se a construção da Ferrovia Transoceânica, ligando a costa brasileira, no Atlântico, à costa peruana, no Pacífico. Esse projeto, que data de 2008, mas ainda não saiu do papel, reduzirá significativamente os custos de importação para a China, sobretudo de grãos e outros produtos agrícolas brasileiros.
Na noite da última quarta-feira, fontes familiarizadas com a negociação revelaram à imprensa brasileira, em condição de anonimato, que o capital disponibilizado para a realização dessas obras será depositado em um fundo gerido pela Caixa Econômica Federal e pelo Banco Industrial e Comercial da China (ICBC), sendo que o financiamento será 100% chinês, segundo as fontes.
Além do Brasil, a China se comprometeu recentemente a investir pesado em toda a América Latina, missão para a qual já teria disponibilizado US$ 250 bilhões, a serem gastos nos próximos 10 anos.
Segue abaixo a reprodução da entrevista concedida por Theotonio dos Santos, professor emérito da Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor visitante da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), sobre os interesses chineses no continente sul-americano e, em particular, sobre a importância da Ferrovia Transoceânica para o Brasil e para a China.
Sputnik: Professor, estamos na fase preliminar dessa megaferrovia e, na próxima semana, é aguardado no Brasil e em outros países da América do Sul o primeiro-ministro da China, Li Keqiang, que formalizará a disponibilidade do governo chinês em investir maciçamente nos países sul-americanos. Como o senhor vê esse interesse da China pela América do Sul e esse projeto da megaferrovia?
Theotonio dos Santos: Esse projeto, na verdade, é antigo. Já se tomaram até algumas providências nessa direção. Mas sempre fica pelo meio, as coisas não vão até o fim. Por falta de planejamento e, muitas vezes, por falta de recursos. Não porque não tenhamos recursos, mas porque destinamos nossos recursos para outros fins. Do ponto de vista da China, essa é uma questão-chave. É claro que o fato de o Brasil não ter uma saída para o Pacífico é uma limitante muito séria para o país, como produtor e exportador. Não só para o setor agrícola, mas também para o setor mineiro. A Ásia hoje é o grande destino das exportações no mundo. Ela cresceu enormemente, aumentou sua renda de maneira espetacular. Particularmente, a China. De forma que, hoje, grande parte do comércio mundial se orienta para essa direção. E isso obriga a ter uma relação com o Pacífico muito mais séria e mais orientada do que o Brasil teve até agora. É uma necessidade. A China simplesmente parece ser uma das mais beneficiadas com essa política industrial, de buscar abrir mercados, porque a demanda dela é muito grande. Tanto de matérias-primas em geral como de produtos agrícolas, pois tem um excedente financeiro muito alto. São reservas de 4 trilhões de dólares, que ela está manuseando na forma de fundos soberanos. No Brasil, nós temos 400 bilhões de dólares de reservas, mas o nosso Banco Central é contrário à utilização das reservas como instrumento de investimento. Nesse contexto, a China passa a ser quase a única força econômica capaz de cobrir essas aspirações de desenvolvimento econômico, de expandir as exportações do nosso país.
No caso da ferrovia, que já está articulada com o Peru mas que não está avançando suficientemente, creio que, num prazo relativamente curto, nós estaremos exportando massivamente através dela.
S: Essa ferrovia tem o nome de Transoceânica, justamente por ligar os dois oceanos, e é um projeto orçado em 30 bilhões de reais. Isso se ela cortar a Amazônia. Mas, como já se sabe que haverá resistência de ambientalistas, há estudos alternativos de modo que ela corte também a Bolívia. E aí seria um terceiro país beneficiado pelas importações chinesas de produtos sul-americanos. O senhor diria que a China está descobrindo a África e a América do Sul, professor Theotonio?
TS: Eu diria que sim. Até vinte anos atrás, mais ou menos, realmente a China não conhecia bem a América Latina e a África. Mas ela fez um esforço colossal…
S: Professor, nós estamos incluindo a África porque a China tem comprado terras nesse continente.
TS: Sim. Ela está transformando a África numa potência exportadora. Nesse momento, é uma das regiões que mais cresce no mundo, porque está se expandindo como economia exportadora e, basicamente, utilizando capital chinês. Tanto do Estado chinês como de empresas privadas.
Na América Latina também. Eu fui Secretário de Assuntos Internacionais do Governo do Estado do Rio de Janeiro (durante o mandato de Anthony Garotinho), e nós recebemos aqui mais de 500 missões chinesas, estudando caminhos para uma interação mais forte. Na década de 1990, nós tínhamos assinado um acordo de desenvolvimento tecnológico voltado para o espaço. Nós estávamos mais ou menos no mesmo nível da China. Tínhamos um potencial muito grande, com uma boa localização para testes etc. Esse convênio foi do Governo Federal, e o resultado foi que, nesses anos, o Brasil não enviou nenhum foguete, enquanto a China já tem inclusive uma estação orbital, com cientistas chineses já trabalhando e estudando não só o nosso planeta, mas também o universo. Isso mostra a diferença entre a política seguida na China e aqui. E hoje há muita reclamação de que nós estamos exportando para a China apenas matérias-primas. Mas não é porque os chineses só querem matéria-prima. Eles querem muito, porque precisam muito. Mas estavam buscando conosco acordos de alta tecnologia, de interesse comum.
S: O primeiro-ministro Li Keqiang é esperado em Brasília na próxima terça-feira, dia 19, trazendo na bagagem 53 bilhões de dólares (equivalente a 160 bilhões de reais) para investimentos. E isso é apenas uma fração dos 250 bilhões de dólares que a China anunciou ter disponíveis para aplicar na América Latina.
TS: Exatamente. Essa é uma política que a China vem seguindo, de usar esse excedente econômico colossal que tem para criar uma economia mundial que atenda não só as necessidades chinesas, mas também sirva para um desenvolvimento planetário, para sairmos dessa posição subordinada que nós temos dentro da economia mundial. Isso é interesse da China e é interesse nosso. Podemos chegar a acordos muito importantes.