O evento, organizado em parceria com as Fundações Friedrich Ebert e Perseu Abramo, também contou com a presença do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que decidiu se pronunciar ao fim do debate.
“A vinda do companheiro Felipe González para o debate pode ser o começo de um novo momento de discussão que a gente tenha que fazer no Brasil. Durante muito tempo nós nos trancamos na nossa verdade e também durante muito tempo assistimos a esquerda europeia ir definhando, definhando, perdendo cada vez mais o discurso”, disse Lula, agradecendo a presença de González.
Sobre a experiência no poder do Partido dos Trabalhadores (PT), o ex-presidente disse que seu “maior legado” foi o exercício da democracia. “Nunca antes na história do Brasil o povo exerceu tanta democracia”, disse ele, destacando mecanismos de participação nas decisões políticas introduzidas durante seu governo.
Lula: "Nunca antes na história do Brasil o povo exerceu tanto a democracia e participou das decisões do governo como no governo do PT."
— Instituto Lula (@inst_lula) 22 junho 2015
No entanto, Lula reconheceu que o partido precisa repensar sua atuação, principalmente porque, segundo suas palavras, “perdeu um pouco a utopia” que o caracterizava antes de ter chegado ao poder.
“A gente nasceu de um sonho, e era um sonho muito pequeno: que a classe trabalhadora pudesse ter vez e ter voz. E nós construímos essa utopia. (…) Acontece que o partido político cresce (…), e quando isso acontece entramos na roda gigante da política. E muitas vezes, ao invés de mudar a politica, a gente vai se adequando à política”, ponderou o ex-presidente.
“O PT perdeu um pouco a utopia. Lembro como a gente acreditava nos sonhos, como a gente chorava quando falava. (…) Hoje a gente só pensa em cargo, (…) em ser eleito. É o vício do partido que cresceu e que chegou ao poder. O PT precisa construir uma nova utopia”, acrescentou, muito aplaudido pelo público.
“Temos que decidir se queremos salvar nossa pele e nossos cargos ou salvar o nosso projeto”, resumiu.
Sobre a Líbia, Lula disse que “a morte do [presidente Muammar] Khadafi não tem explicação para a democracia”. “Resolveram transformar a Líbia no inimigo da humanidade, e hoje a situação está muito pior”, disse ele, lembrando ainda o caso de Saddam Hussein, “quando os americanos inventaram que tinha que invadir o Iraque”.
“A democracia nunca correu tanto risco como agora, porque pessoas insensatas tomaram decisões insensatas”, afirmou Lula, em crítica aberta às intervenções militares patrocinadas por líderes do Ocidente.
Em suas palavras, a prática neoliberal que caracteriza o poder dos mercados financeiros globalizados sobre os governos nacionais se traduz como um “esforço de austericídio”, que levou Atenas a aumentar sua dívida de um patamar que era de 20% sobre o PIB grego em 2010 para 190% em 2015.
“A verdadeira consequência [da queda da União Soviética] é que pela primeira vez na História se dá mais importância ao mercado do que à democracia”, pontuou o ex-presidente.
"Não há democracia sem mercado, mas há mercado sem democracia. É um casal, mesmo desequilibrado", diz Felipe González pic.twitter.com/KilMjHkNnf
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“Nosso verdadeiro poder [enquanto governo] não é a produção de riquezas (…), é criar um marco regulatório previsível e eficaz capaz de proteger as grandes massas e não deixá-las abandonadas”, acrescentou.
González também falou sobre os movimentos anti-imigração que têm se fortalecido na Europa, por vezes com nuances potencialmente fascistas e xenófobas.
A situação, segundo González, é reflexo de outro erro de julgamento político da liderança europeia. Ele citou, particularmente, o caso da intervenção militar da OTAN na Líbia em 2011 para derrubar o governo de Khadafi, operação que, segundo o ex-presidente espanhol, levou à “desintegração completa do país” e provocou uma enorme onde de refugiados e imigrantes.
González disse ainda que, na época, tentou explicar para a então secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, bem como para o então presidente francês Nicolas Sarkozy, que a intervenção na Líbia levaria a uma catástrofe, mas não teve sucesso.
O ex-presidente espanhol pontuou que a melhora das condições sociais fomentada por governos de esquerda, em geral, acompanha naturalmente o aumento das demandas populares, bem como das críticas e dos ataques, justamente porque o povo ganha condições materiais para poder exigir mais direitos. No entanto, González enfatizou sua total aversão a qualquer movimento golpista, ressaltando a necessidade, para a democracia, de se respeitar a legitimidade das eleições.
Terceiro presidente do Governo desde a volta da democracia na Espanha, González contribuiu entre 1982 e 1996 para a consolidação da democracia espanhola após o fim da ditadura de Francisco Franco, que foi de 1936 a 1975. Membro do Partido Socialista Obrero Español, ele se definiu na conferência desta segunda-feira como membro da “tribo da Internacional Socialista”.
“Durante seus quatro mandatos, ajudou a Espanha a reduzir a inflação, modernizou a economia e ampliou a integração com o continente europeu. Foi um dos responsáveis pela entrada do país da Comunidade Europeia, embrião da União Europeia. Além disso, garantiu a expansão da democratização espanhola dando independência ao judiciário e fortalecendo a liberdade de expressão e de imprensa; promoveu a inclusão social ampliando o acesso das camadas mais pobres à saúde e à educação”, segundo informa o site do Instituto Lula.