"Naquele dia demorou alguns minutos para entender aquela situação toda, o que eu e aquelas pessoas negras da loja estávamos sofrendo. E quando eu percebi, também notei como os outros clientes ficaram em silêncio. É o silêncio a tônica de um discurso como esse", avalia Stephane, estudante de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
De 2005, ano em que entrou em vigor a política de cotas em instituições públicas de ensino superior, até 2015, ano do último levantamento do IBGE sobre o tema, o número de alunos negros em idade universitária mais que dobrou: de 5,5% para 12,8%. A estatística, porém, ainda é tímida quando comparada aos números de estudantes brancos: o salto foi de 17,8% para 26,5% no mesmo período.
O IBGE justifica a dificuldade de acesso dos negros a um diploma universitário culpando o atraso escolar. Majoritariamente alunos de escola pública, os estudantes enfrentam defasagem e repetência: na idade em que deveriam estar no terceiro grau, 53,2% dos negros estão cursando nível fundamental e médio (entre brancos, o número é bem menor, 29,1%).
"Passei a minha infância toda com um problema de auto-estima como pessoa negra. Tentei embranquecer de muitas formas, quando era pequena 'botava' pregador no nariz para tentar afiná-lo, tive problemas em achar meu cabelo bonito e usava química para deixá-lo mais aceitável socialmente. Não entendia porque era preterida pelos meninos que eu gostava, de ser hostilizada em espaços frequentados por amigas brancas, de sofrer preconceito por ser favelada", relembra.
Presença negra
Os problemas não terminam no momento em que o estudante negra finalmente ocupa uma cadeira no ensino superior. Muitas vezes, a aprovação também pode significar o aprofundamento de fronteiras raciais, já que a representatividade é pequena. Essa é a opinião do estudante de Relações Internacionais, William Marinho.
"Na maioria das vezes, quem são as referências do negro na universidade? Os professores são brancos, os textos são escritos por brancos. Quem a gente vê negro é a pessoa que limpa o prédio, a funcionária que abre as salas, a 'tia' da xérox. Isso afasta as pessoas da minha raça, fico vendo que mesmo meus vizinhos ainda enxergam a continuidade dos estudos como algo distante. O negro ainda é condicionado a pensar que só pode ser motorista, dono de salão, pedreiro, nunca intelectual", conta Marinho, que mora na favela do Vidigal, zona sul do Rio de Janeiro.
Já Stephane tenta criar oportunidades para que pesquisadores negros possam discutir não só a negritude, mas qualquer tipo de ciência. Ao lado de amigos, ela é uma das integrantes da equipe discente que neste ano realizou o primeiro "Escurescências". Na lista de convidados, homens e principalmente mulheres negras.
"O vazio do conhecimento negro no currículo é algo bizarro. Demorou vários semestres para que eu tivesse contato com algum material escrito por negros. Hoje curso a disciplina de Intelectuais Negras e tenho contato com isso".
Universidade é espelho da sociedade, diz pesquisador
"O racismo não escolhe lugar para aparecer. Quem imagina que o mundo acadêmico seria poupado disso não está nesse país, está em Marte, em qualquer outro lugar. É um procedimento que a nossa sociedade carregou por séculos e que ainda vamos levar muitos anos para erradicar. As academias não fogem desse processo, elas estão inseridas nessa mesma realidade. A própria entrada de negros por políticas afirmativas foi alvo de polêmica", reflete o professor.
Gonçalves vê avanços, como a consolidação da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) criada no ano 2000, mas ainda enxerga problemas no que chama de "ciências nobres" como física quântica ou química. "Existem negros nessas áreas, trabalhando com alta tecnologia, mas na hora de apresentar descobertas, de representar equipes em simpósios e congressos, eles raramente vão. A representação se dá por colegas brancos e este problema não tem visibilidade nacional", apresentando como uma das soluções a articulação das ciência com saberes ancestrais africanos, por exemplo.
"É importante e benéfico saber que todo dia 20/11, os movimentos negros fazem com que o Brasil desperte dessa amnésia, esse esquecimento. Se não lembrou durante um ano, pelo menos em um dia vamos dizer 'pare de palhaçada e perceba que ainda não resolvemos estas questões'. O racismo está incrustado, encravado no imaginário coletivo brasileiro, então tem que lembrar mesmo", finaliza.