Foram milhares de pessoas participando da Lavagem das escadarias da Basílica do Senhor do Bonfim, em Salvador, Bahia. O tradicional evento tem uma caminhada de devotos, turistas e curiosos que percorreram um trajeto de 8 quilômetros entre a Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia e a famosa Basílica do Senhor do Bonfim. A manifestação tradicional une diversas religiões e celebra a tolerância religiosa como símbolo do notório sincretismo brasileiro.
Hédio Silva Júnior, professor de direito, é advogado especialista em defesa de direitos religiosos. Ele é um dos profissionais que trabalha no caso do recurso extraordinário 494601, no Supremo Tribunal Federal (STF), que julga restrições às religiões de matriz africana.
"Dos cinco séculos do Brasil, quatro séculos foram vividos sob a égide de uma religião oficial de Estado. O Estado, até a república, elegia uma religião como a única religião reconhecida, a religião oficial. Um país que tem uma história como essa, desenvolveu uma cultura, especialmente no aparelho de Estado, o que é mais lamentável, desenvolveu uma cultura de apropriação do espaço público por interesses religiosos", explica o professor de Direito em entrevista à Sputnik Brasil.
Ele ainda acrescenta que nos últimos anos essa cultura se intensificou e que agentes públicos têm demonstrado publicamente suas convicções religiosas, o que fere a Constituição. "Tem um fator histórico e tem uma brutal dificuldade das pessoas levarem a sério a ideia de república, de coisa pública, de prevalência da lei e não da prevalência de interesses privados", lamenta o advogado.
Hédio Silva Júnior acredita que o trabalho para combater a intolerância religiosa e a contaminação da "coisa pública" por interesses dessa natureza seja um dever do poder Judiciário, a quem ele devota esperança.
"O Judiciário se apresenta hoje como a última porta de esperança para que a Constituição seja levada a sério, para que os direitos previstos na Constituição sejam efetivamente exercidos pelos cidadãos e para que o gestor público não subordine o interesse público a interesses privados", explica.
Ele vai ainda além, colocando o dedo na ferida da política brasileira, onde cresce, segundo ele, a força de grupos religiosos.
"Na medida em que o próprio poder Executivo, hoje, vai sendo cada vez mais dominado por facções religiosas que assumem a gestão pública preocupados em assegurar o interesse do seu grupo religioso, aos que não concordam com esse tipo de postura, cabe e resta apelar ao Judiciário, às forças internacionais e à opinião pública — nacional e internacional — nesse processo lamentável de privatização do espaço público por interesses religiosos", arremata o professor de direito e defensor da causa das religiões de matriz africana no Brasil.
Judiciário: arena dos direitos religiosos
Hédio Silva Júnior, ao lado de sua equipe, explica que participou de uma série de casos emblemáticos envolvendo direitos religiosos no Brasil. O mais recente a causar comoção nacional é o caso do recurso extraordinário 494601.
Em agosto de 2018, o recurso foi discutido pela 1ª turma do STF. A ação parte do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPF-RS) a respeito da Lei Estadual 12.131/04-RS, que altera a Lei 11.915/03, o Código Estadual de Proteção aos Animais, e adiciona um trecho permitindo o sacrifício de animais em rituais religiosos de matriz africana.
À época, já haviam votado votado o relator, ministro Marco Aurélio Mello, parcialmente a favor, e também o ministro Luiz Edson Fachin, que se colocou contra o recurso. Em seguida houve um pedido de vistas do ministro Alexandre de Moraes, que devolveu o processo em no início de outubro de 2018. A nova sessão de julgamento do recurso está marcada para o dia 28 de março deste ano.
"Esse não é um tema, eu diria, exclusivo das religiões afro-brasileiras, esse é um tema que diz respeito à liberdade de crença e esse é um tema que tem uma dimensão econômica também e eu estou otimista sim que no próximo dia 28 de março nós vamos ter um pronunciamento favorável em relação a isso", aponta o advogado.
Apesar das ações em contrário que chegaram ao STF, Hédio defende sua atitude de fiar-se no poder Judiciário para garantir a liberdade de crença.
"Na maior parte dos casos, senão em todos os casos emblemáticos que nós judicializamos que dizem respeito à liberdade de crença no Brasil, o Judiciário foi favorável às demandas que nós apresentamos. Então, isso não autoriza ninguém a dizer que há uma perseguição por parte do Judiciário", desmistifica o especialista.
Porém, ele ressalta que esse setor do poder público está também se contaminando por interesses privados religiosos.
"O que há sim é, talvez, um número acima do que seria razoável — um número de juízes, promotores, etc — que se apegam mais às suas facções religiosas, aos seus interesses religiosos do que à legalidade. Isso é uma coisas ruim para a democracia", mostra o outro lado. Hédio acredita que essas ações sejam isoladas e não correspondem ao todo do corpo do poder Judiciário.
Religião na política, pessimismo sobre o futuro
O aumento da presença de setores religiosos na política brasileira é uma preocupação que deve estar na cabeça dos defensores da liberdade de crença no Brasil, acredita o professor Hédio Silva Júnior.
"Nós vamos ter um aumento exponencial e um agravamento do problema da liberdade religiosa. Porque quando o discurso do sectarismo religioso ele está presente nos templos religiosos ou está presente nos meios de comunicação como, lamentavelmente, acontece aqui no Brasil, você já tinha um problema invisível que só ganhou visibilidade nos últimos anos e agora isso é agravado pelo fato de que o poder político agora também se faz acompanhado do discurso do ódio religioso", lamenta o advogado.
Hédio acredita que o período do atual governo será caracterizado por um aumento da violência religiosa, pois "muita gente vai se sentir autorizada pelo poder público a praticar a violência e a intolerância". O advogado ainda acrescenta:
"É uma falácia essa história de que se trata de exercício de liberdade de expressão, ou exercício de liberdade de crença, porque você não ouve crítica a judeu, você não ouve crítica a muçulmano, você raramente ouve crítica a ateus, você não ouve crítica a kardecistas. A crítica se concentra nas religiões afro-brasileiras, portanto isso é uma característica do racismo brasileiro, é algo que o Supremo Tribunal Federal já denominou de racismo religioso", conclui.