Nas últimas 24 horas parte do Rio foi palco da guerra entre grupos criminosos pelo controle de comunidades localizadas no centro da cidade. Até o momento, duas pessoas morreram, nove ficaram feridas e diversos indivíduos foram presos.
Na tarde de quarta-feira (26), houve tiroteio na região da Lagoa, na zona sul, e, à noite, intenso confronto no Complexo de São Carlos. Uma mãe morreu tentando proteger o filho. Na quinta-feira (27), houve mais tiroteios no centro do Rio, além de sequestros no Rio Comprido e no Estácio.
Tiroteios, sequestro e vítimas: guerra do tráfico atinge o Rio há 24 horas https://t.co/BjgCfDsghW pic.twitter.com/NWkN3jbgZ8
— Sputnik Brasil (@sputnik_brasil) August 27, 2020
Segundo o antropólogo, especialista em segurança pública e ex-instrutor do Bope Paulo Storani, o caos vivido na cidade é uma "consequência direta" da decisão do STF de proibir operações policiais em favelas da cidade durante a epidemia do coronavírus.
O especialista afirma que está ocorrendo uma "disputa por território" entre as facções, e que os criminosos estão se sentindo "confortáveis" sabendo que não haverá uma "ação de contenção" por parte da polícia. Ao mesmo tempo, admite que as operações, "muitas vezes", têm "efeitos colaterais traumáticos", resultando na "morte de inocentes".
"Infelizmente, não tem outras estratégias de atuação na área de segurança pública. Não por falta de vontade da polícia, mas por falta de estrutura, por uma legislação muito condescendente e tolerante com o crime. Mesmo identificado e preso, o criminoso fica pouco tempo encarcerado. Os benefícios que são concedidos a ele são coisas únicas na legislação do mundo", afirmou o ex-instrutor do Bope (Batalhão de Operações Especiais).
Aumento de mortes durante pandemia
No dia 5 de agosto, a maioria do STF referendou liminar do ministro Edson Fachin, do mês anterior, barrando operações policiais em favelas do Rio durante a pandemia, salvo em casos excepcionais. A decisão foi tomada como base na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 635 (ADPF 635), iniciativa do PSB ao lado de movimentos sociais de favelas. O argumento da ação é que houve aumento das mortes em operações policiais mesmo durante a pandemia, muitas vezes vitimando inocentes e até crianças.
Storani afirma que o objetivo da ADPF é louvável, "evitar pessoas inocentes sendo alvos de disparos por traficantes, podendo ser também por policiais". No entanto, ele argumenta que, naturalmente, a polícia diminuiria as ações em favelas durante a crise do coronavírus, e que agora os criminosos sentem "conforto em promover ações de tomada de território e expansão do negócio".
"O que não vimos antes porque a polícia estava atuando. Mal ou bem, a polícia estava atuando", avaliou.
Criminoso 'tem muito direito'
Para ele, o STF ultrapassa os limites legais ao querer legislar sobre a política de segurança do Rio de Janeiro. O especialista diz ainda que "até poderia considerar uma restrição das operações policiais, mas se houvesse uma legislação dura em relação ao criminoso", que para ele tem "muitos direitos". O ex-instrutor do Bope dá como exemplo outra decisão do STF, que proibiu, em 2019, a prisão após condenação em 2ª instância. Segundo Storani, a medida "tornou o Brasil um país de bandidos".
'Matar não é sinônimo de política de segurança'
Para Adilson Paes de Souza, tenente-coronel da Polícia Militar aposentado e doutor em psicologia pela USP, a decisão do STF é acertada, pois protege a vida da população, muito menos traz como consequência um aumento da criminalidade.
"A determinação impede que as forças policiais entrem disparando e exterminando pessoas em favelas. Matar pessoas não é sinônimo de política de segurança. Está comprovado que produzir cada vez mais mortes não produz resultados, pelo contrário, gera mais violência e mais ocorrências", afirmou à Sputnik Brasil.
Segundo Souza, a prática policial do dia a dia acaba fazendo com que pessoas se tornem "suspeitas" apenas pela "cor" ou "lugar que moram". Para ele, a população está "entregue à insegurança", "espremida" entre "lados opostos", o crime organizado e as forças policiais.
Mortes em ações policiais diminuíram após decisão
De acordo com dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio, o número de pessoas mortas pela polícia teve queda de 76% no estado após a entrada em vigor da determinação do Supremo. Os óbitos diminuíram de 348, em junho e julho de 2019, para 84 no mesmo período deste ano.
Por outro lado, o semestre de janeiro a julho de 2020, abrangendo os primeiros meses da crise do coronavírus, foi o segundo com mais mortes em comparação com o mesmo período em outros anos da série histórica. As 775 mortes registradas no período colocam o primeiro semestre de 2020 atrás apenas dos seis meses iniciais de 2019, quando 885 pessoas foram mortas em ações policiais. Os dois períodos fazem parte da administração do governador Wilson Witzel.
Rio: letalidade policial cai após liminar do STF e pesquisadores e ativistas pedem continuidadehttps://t.co/akapUtiH2H
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Guerra de facções é histórica
Para o advogado Joel Luiz, membro do Conselho de Direitos Humanos da OAB-RJ e da Iniciativa Direito a Memória e Justiça Racial, um dos grupos que participou da redação da ADPF 635, as ocorrências registradas no Rio não são consequência da decisão do Supremo.
"A única chance de afirmar isso seria se essa guerra de facções e tentativa de tomada de territórios fossem a primeira da história do Rio de Janeiro, que tivessem acontecido de forma inédita após a decisão do STF. Mas a gente sabe que, historicamente, por ter um território sob controle de diversas facções de tráfico e milícia, o Rio convive com disputa por territórios", disse à Sputnik Brasil.
O advogado critica a letalidade da polícia do Rio, a "que mais mata no país", e afirma que atribuir os últimos episódios de violência na cidade à ação do Supremo é "uma tentativa mesquinha" de desvirtuar o debate sobre a segurança pública.
"O objetivo da ADPF é criar políticas de segurança públicas que não tenham a morte realizada por autoridades policiais como algo banal, comum. É isso que ela visa impedir, e criar políticas de segurança pública feitas a base de estratégia e inteligência", disse Joel Luiz.
'Vai ter que justificar'
Umas das críticas da polícia à decisão do STF é de que ela não esclarece quais são as situações excepcionais em que as operações seriam permitidas. O ex-instrutor do Bope concorda com essa visão. De acordo com Storani, a autorização dependeria de uma autorização da Justiça, mas em "situações emergenciais", como a do Rio, "não haveria tempo hábil" para se obter isso e resolver o problema.
"A decisão é tomada depois que qualquer ação se torna inapropriada, porque já perdeu a temporalidade, não tem mais como responder, então é melhor deixar para lá e fazer só o saldo final de vivos e mortos e o que aconteceu, exatamente como vimos na noite anterior e nesse dia de hoje", afirmou.
O advogado Joel Luiz rebate a crítica, argumentando que a ADPF "fala em justificativa em hipóteses absolutamente excepcionais", mas não exige "autorização". Segundo ele, a "polícia pode entrar no morro, mas vai ter que justificar, vai ter que demonstrar ter sido absolutamente excepcional, e se tem uma guerra de facção, é excepcional".
"Se a polícia está na dúvida quanto a determinação imposta pelo STF, poderia pedir esclarecimentos ao ministro Fachin nos autos da ADPF 635, o que não foi feito. É no caos e na falta de informação que se torna mais fácil atuar na ilegalidade. A ADPF não visa impedir o estado de oferecer segurança pública para a população, busca fazer com que o Estado, via polícia, forneça segurança pública resguardando a vida, sobretudo em favelas e periferias", afirmou.