Em menos de dois anos o Brasil vai voltar às urnas para escolher o novo presidente da República. Mas o segundo turno das eleições municipais no domingo (29) mostrou que o quadro político mudou rapidamente desde a eleição de Jair Messias Bolsonaro em 2018. O Brasil que saiu das urnas optou pelo centro, descolou-se dos polos extremistas e mudou o xadrez político do país. A chave, como sempre, passa pelos partidos.
Os números da eleição apresentaram uma nova configuração. Os cinco maiores partidos de direita e de centro governarão mais de 60% dos brasileiros. Vários deles formando a base do Centrão, aliado de Bolsonaro. Mas isso significará necessariamente apoio e sustentabilidade a ele até 2022?
"O Centrão pode estar usando Bolsonaro, não necessariamente o contrário. Sabemos que é um bloco de fidelidade pragmática. E bate de frente com as promessas de campanha do então candidato. Ele é a velha política, a política fisiológica. Se a popularidade de Bolsonaro cair por causa do fim do auxílio emergencial, o Centrão vai agir pragmaticamente", contou Rodrigo Prando, cientista político e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, em entrevista para a Sputnik Brasil.
Para Rodrigo Prando, o presidente não deve se fixar nessa nova realidade que mostra um Centrão revigorado.
"Bolsonaro precisa descer do palanque e criar uma marca se quiser ser reeleito em 2022. Bolsonaro sai das eleições municipais menor do que antes. As urnas mostraram que é possível ter um movimento de centro-direta sem a figura dele. Alguns partidos perderam e precisam se repensar. Outros aumentaram sua margem de manobra no campo político", disse.
Como em qualquer eleição, há vencedores e vencidos. Mas o que surpreende em 2020 é a velocidade da mudança se comparado a 2018.
"Os primeiros vencedores foram os eleitores porque mesmo com a pandemia, mesmo com abstenção alta, eles optaram por um tom moderado, escolheram uma revitalização da política. Além disso, claro que houve uma vitória robusta da centro-direita através dos partidos que formam o Centrão, como o Democratas, o PP e o Podemos. No geral, houve sim um distanciamento do discurso polarizado para os dois lados", disse.
E os perdedores?
"Os dois polos perderam. De um lado, Bolsonaro sai menor mesmo que a gente saiba que ele vai argumentar que venceu, mas isso é mera retórica. Tanto ele como o petismo perderam", explicou o professor.
O presidente aparentemente não observou bem como distribuir as peças deste tabuleiro.
"Bolsonaro errou no 'timing' político, mas não esqueçamos que ele nunca teve apreço por partidos. Mas de fato ele fez apostas. A primeira foi pensar em controlar o PSL. Não deu certo. A segunda, a criação de um partido para ele, mas falhou aqui também, especialmente com o agravante da pandemia, dos cartórios fechados e não botou um partido de pé. E a terceira é apostar que até março de 2021 ele tenha ao redor de si um partido próprio. Mas ele não teve o 'timing' correto para entender o que estava acontecendo", comentou.
"A tal nova política ficou velha muito rápido", observou em entrevista para o jornal Folha de São Paulo. "Acabou a história do novidadeiro, dos blogueirinhos, dos famosos ou do discurso antipolítica".
A projeção para a eleição presidencial de 2022 é evidente. Para Bolsonaro, não só por causa dos resultados de domingo (29).
"É preciso olhar para trás para perceber Bolsonaro. Ele ficou dois anos na confrontação. Não desceu do palanque. Ele agora tem dois anos para criar sua marca de realização como aconteceu com Fernando Henrique, com controle da inflação e estabilidade econômica, com Lula e a diminuição da pobreza e o crescimento da classe média, com Dilma mesmo que tenha sido uma marca ruim e até Temer com uma recuperação dos problemas econômicos e o projeto da reforma da previdência. Mas qual a marca de Bolsonaro até agora? Quais os projetos pós-pandemia além de se reeleger? Não conheço. E é preciso ter uma marca", disse o professor.
Questões como a crise econômica e a pandemia são apenas alguns - talvez os mais graves - elementos para se pensar no Palácio do Planalto em dois anos. As urnas falam de diferentes formas. Mesmo tendo sido derrotados no campo da esquerda, Guilherme Boulos (PSOL) e Manuela D'Ávila (PCdoB) ganharam mais projeção. E se candidatam, ao menos, a ter mais poder de barganha. O discurso de Boulos reconhecendo a derrota se dirigiu, entre outros, a nomes do pensamento progressista.
"Sim, é um aceno. Mas o importante é saber como a esquerda vai se posicionar. Boulos e Manuela são jovens, mas não são neófitos em política. Agora, com os votos que receberam e com a imagem projetada mais nacionalmente, vão se sentar como adultos, de igual para igual, para conversar com outros representantes da esquerda", disse Prando e reforçando a imagem deles rumo às eleições para governador também em 2022.
E agora PT?
Falar em esquerda é falar no Partido dos Trabalhadores (PT), o grande derrotado neste grupo. O enxugamento político do partido é uma equação que bate num velho fantasma.
"O PT precisa de uma autocrítica sobre sua posição supostamente hegemônica. O partido não fez nenhum prefeito e precisa repensar, por exemplo, a defesa da biografia de Lula. Uma análise muito profunda sobre isso para viabilizar o futuro, especialmente com os resultados de Boulos e de Manuela. O partido pode fazer isso. Tem atores, tem militância. Há possibilidades abertas", comentou.
"Naturalmente que já há nomes. O antagonismo de Bolsonaro com o governador de São Paulo, João Doria, é evidente. Embora tenha apoiado Bolsonaro em 2018, ele logo se deslocou do presidente, especialmente com o surgimento da pandemia da COVID-19. Não dá para imaginar uma versão brasileira de Joe Biden pelas características do modelo político brasileiro em comparação com o norte-americano. Mas nomes como o [apresentador de TV] Luciano Huck, como o governador maranhense Flavio Dino (PCdoB) e seu colega gaúcho Eduardo Leite (PSDB) estão no cenário. Mas falta muito ainda. Há as circunstâncias econômicas e a pandemia também. Mas claramente que São Paulo, com Doria e novamente com Covas, é um indicativo forte", comentou.
As alianças serão fundamentais, como sempre acontece na política. Mas talvez elas tenham que passar por fusões rumo a 2022.
"Pode haver fusões rumo a 2022 diante de um quadro de pulverização de partidos, mas é importante lembrar que nosso sistema político permite esta pulverização e isso não ajuda na governabilidade. Mas há votos suficientes para que isso aconteça? Há outros problemas. Há uma regionalidade muito forte nos partidos e me pergunto se isso pressupõe um sentimento nacional, um alcance nacional. E vivemos hoje um presidencialismo de cooptação e não de coalizão como aconteceu, por exemplo, com Fernando Henrique. E há a cláusula de barreira que restringe ou impede a atuação parlamentar de um partido que não alcance um percentual de votos. Essa exigência de votação mínima significa perda de espaço para alguns partidos", explicou.
Bolsonarismo
No campo do centro e da direita, há uma nova realidade. Nenhum candidato essencialmente afinado com Bolsonaro venceu. Prando entende que é possível sim pensar num movimento de centro-direita sem Bolsonaro a partir do que aconteceu nas urnas.
"Mas é importante ressaltar que o bolsonarismo transcende Bolsonaro, ou seja, as visões que o eleitor dele tem sobre o país. O bolsonarismo pode persistir, o eleitor pode entender que o discurso polarizador pode ser bom para ganhar a eleição, mas sem esquecer por outro lado a prática administrativa", argumentou, encerrando com um lembrete. "É importante frisar que política não é um filme, é uma fotografia. E a foto, agora, revelou um caminho para o centro. Mas muita água ainda vai rolar pela frente. Claro que o filme de 2022 já começou, mas ainda falta muita coisa a ser vista", comentou.