Mesmo após uma gestão marcada por conflitos diplomáticos com a China, o ex-chanceler Ernesto Araújo não acredita que sua atuação à frente do Itamaraty possa ser classificada como anti-chinesa.
Em depoimento à CPI da Covid, na última terça-feira (18), o ex-ministro das Relações Exteriores rejeitou o rótulo usado por senadores, admitindo apenas desentendimentos com o embaixador da China no Brasil, Yang Wanming.
"Eu não entendo nenhuma declaração que eu tenha feito em nenhum momento como anti-chinesa. Houve determinados momentos, como se sabe, por notas oficiais, do Itamaraty, por minha decisão, nos queixamos dos comportamentos da embaixada ou do embaixador da China em Brasília, mas não houve nenhuma declaração que se possa chamar de anti-chinesa. Então não há nenhum impacto de algo que não existiu", disse o ex-chanceler à comissão.
Para Marcus Vinicius Freitas, professor visitante de Direito Internacional Público e de Relações Internacionais da Universidade de Relações Exteriores da China, sediada em Pequim, o que se viu na atuação do ex-ministro foi uma série de turbulências no relacionamento entre os dois países, causada por uma "perspectiva ideológica".
Segundo o especialista, o governo brasileiro tentou reproduzir a mesma retórica do ex-presidente dos EUA, Donald Trump.
"Houve uma cruzada anti-China e o Brasil acabou entrando nesta história, liderado por alguns membros que estão no governo e também pelo ex-ministro Ernesto Araújo, que assumiu esta bandeira e que, com algumas frases, tweets e manifestações, não fomentou um relacionamento melhor entre os dois países", afirmou Freitas em entrevista à Sputnik Brasil.
O professor avalia que esta conduta é reflexo de um desconhecimento histórico. Segundo ele, Araújo e outros membros do governo brasileiro com postura anti-chinesa não têm visto os "ventos de mudança".
"Essas pessoas talvez não tenham compreendido, por não conheceram a Ásia, por não terem estudado, aquilo que tem acontecido na China. Isso faz com que elas fiquem perpetuando uma crítica constante à China, à Ásia, sem entender aquilo que está se passando naquela parte do mundo, que é essencial para o próprio crescimento global", pontuou.
Para ele, o grupo ainda tem uma perspectiva da China do período anterior à derrubada do Muro de Berlim, acreditando que precisa lutar contra uma suposta ameaça comunista.
Freitas ressalta ainda que "o que a esquerda no Brasil preconiza não tem nada a ver" com as práticas do governo chinês.
Para ele, esta falta de compreensão leva à repetição de dogmas que prejudicam o relacionamento entre os países, que "poderia ser muito mais frutífero".
O professor aponta que falta "inteligência estratégica" na análise do governo sobre o relacionamento do Brasil com a China.
Atraso de insumos vindos da China
Apesar da falta de alinhamento entre os países, o professor não acredita que a China esteja "punindo" o governo Bolsonaro ao atrasar o envio de remessas de produtos para a fabricação das vacinas no país.
"Não acredito que esta seja a situação, porque isso teria uma série de consequências que poderia fomentar aquele discurso contrário à China", afirmou o especialista.
Segundo Freitas, neste momento de transição, em que as economias globais começam a se remodelar em meio à pandemia de COVID-19, o que a China deseja é ter mais parceiros.
"O país tem, inclusive, utilizado a diplomacia da vacina no sentido de até melhorar um pouco a sua imagem, que foi chamuscada com a ideia do vírus chinês e todas as teorias conspiratórias criadas com relação à China", disse o professor.
Bolsonaro x China
Além de membros de sua equipe, o próprio presidente Jair Bolsonaro já deu declarações que criaram atritos entre os dois países.
Para o professor, o aconselhamento que o presidente recebe não tem sido o mais apropriado para tomar as decisões estratégicas importantes em prol do bom relacionamento bilateral.
"Quero e acredito que [o comportamento de Bolsonaro] tenha muito a ver com o fato de que a equipe que o auxilia talvez não esteja lhe dando o aconselhamento correto", disse Freitas.
O especialista avalia que havia, no início do governo, uma "tentação" em ter uma agenda sintonizada com a postura de Washington, mesmo "contrariando muitas das perspectivas históricas adotadas pelo governo brasileiro".
"Acredito que esta situação, com a rejeição que existe em alguns pontos, tem sido resultado de um equívoco da equipe", afirmou.