Comércio de jegue para China movimenta economia no Nordeste, porém, animais correm risco de extinção
16:08 22.12.2021 (atualizado: 12:15 23.12.2021)
© Folhapress / Eduardo KnappJegues pastam em frente à obra em andamento da Barragem Porcos, que integra a transposição do rio São Francisco, em Brejo Santo (CE) (foto de arquivo)
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Um dos animais mais tradicionais do Nordeste brasileiro, presente em muitas músicas e histórias do sertão, o jegue pode estar ameaçado de extinção por alta demanda chinesa de sua pele para produção de medicamento.
Uma atividade polêmica no Nordeste brasileiro está se tornando cada vez mais comum e começando a se tornar pilar econômico de algumas cidades na região: o abate de jegues para produção de remédio na China.
Segundo reportagem investigativa da BBC, em Amargosa, cidade do centro-sul da Bahia, funciona o Frinordeste, o principal frigorífico de abate de jumentos do país, cuja planta industrial pertence à JBS, mas foi arrendado por dois cidadãos chineses e um brasileiro.
Nele, cerca de 1,2 mil animais são abatidos todas as semanas para posterior exportação à China.
Os animais são mortos com tiro de ar comprimido entre os olhos. Posteriormente, o couro é retirado e enviado para a China, onde é transformado em uma gelatina que é usada para produzir o ejiao, um produto medicinal bastante popular e lucrativo.
A carne, normalmente é separada e exportada para o Vietnã, de acordo com a mídia.
© Folhapress / Zé Carlos BarrettaJegue caminha em propriedade rural em meio a vegetação de caatinga do semiárido nordestino (foto de arquivo)
Jegue caminha em propriedade rural em meio a vegetação de caatinga do semiárido nordestino (foto de arquivo)
© Folhapress / Zé Carlos Barretta
O negócio movimenta bilhões por ano, por exemplo, uma peça de couro pode ser vendida na China por até US$ 4 mil (cerca de R$ 22,6 mil) — uma caixa de ejiao sai por R$ 750. No Brasil, os valores do comércio são bem menores — jumentos são negociados por R$ 20 no sertão, e depois repassados aos chineses.
Devido ao preço barato, o país começou a ser mirado por empresários chineses que trabalham com o medicamento e progressivamente aumentam a atividade na região. Entre 2010 e 2014, o Brasil abateu 1 mil jumentos, já entre 2015 e 2019, foram 91,6 mil. Hoje, esse número é maior. Apenas em Amargosa, são 4,8 mil animais por mês, totalizando 57,6 mil por ano.
Segundo o prefeito de Amargosa, Júlio Pinheiro (PT), o setor é o terceiro maior empregador da cidade, atrás só da própria prefeitura e de uma fábrica de sapatos.
"O frigorífico têm ajudado na geração de renda e de empregos diretos, ainda mais num momento tão complicado da economia do país, sobretudo com a pandemia. O frigorífico tem sido a sustentação de centenas de famílias aqui na cidade", diz Pinheiro, em seu gabinete.
Entretanto, o ramo cresceu em consonância com o aumento da fome e da pobreza em uma região historicamente já castigada por esses problemas, além de fazer parte do processo denúncias de maus-tratos, contaminação de animais por mormo, trabalho análogo à escravidão e abandono de jegues à morte por inanição.
Essa importância econômica foi o principal argumento da cidade ao entrar na Justiça para tentar liberar o abate, que havia sido suspenso após denúncias de maus-tratos, em 2018. Quem decidiu o caso foi Kassio Nunes Marques, hoje ministro do STF e à época, desembargador do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1).
Em decisão de pouco mais de duas páginas, Nunes Marques concordou que a liminar da Justiça baiana que suspendeu o setor prejudicava a economia da Bahia.
O CNPJ do Frinordeste aponta um quadro societário com dois chineses, Ran Yang e Zhen Yongwei, ambos residentes no exterior, e o brasileiro Alex Franco Bastos. Funcionários sobre condição de anonimato disseram que os chineses não aparecem, e quem comanda tudo é o brasileiro. A reportagem da BBC tentou contato com os três, mas nenhum retornou à mídia.
The illegal trade in #donkey skins🐎 in #LatinAmerica supplies #China with gelatine used in ejiao, a traditional medicine. The trade puts donkeys at risk of #extinction. Find out how @TheBrooke is working with local activists to ban it & how you can help👇 https://t.co/sFkd1MGOlp pic.twitter.com/ZrbvSpjbsp
— LIDC (@LIDC_UK) December 16, 2021
O comércio ilegal de jegues na América latina fornece à China gelatina usada no ejiao, um medicamento tradicional. O comércio coloca os jegues em risco de extinção. O The Brooke está trabalhando com ativistas locais para bani-lo e como você pode ajudar
Dia a dia do abate
Três vezes por semana, cerca de 400 jumentos chegam ao Frinordeste em caminhões fechados, 50 por veículo. Funcionários relatam que, diante do calor, de viagens de até 500 km e da condição física debilitada, animais chegam a desembarcar na empresa machucados ou até mortos.
Com pouca variação, a maioria dos 150 trabalhadores ganha por volta de R$ 1.300 por mês. Embora dependam do serviço para sobreviver, os funcionários dizem ter dificuldade em lidar com a morte em massa de um animal que faz parte de seu cotidiano.
"Para mim é como matar um cachorro, um bicho de estimação. A gente cresce montando jegue, e agora tem que ver jegue morrendo sem parar. É muito jegue, amigo. Muito mesmo, tem semana que são 1,2 mil. Ninguém aguenta mais ver essa situação. [...] Trabalho porque preciso, não por concordar. Mas, se fechar, como ficam as famílias aqui?", diz João (nome fictício), funcionário do Frinordeste.
Os animais são recolhidos em vários pontos do Nordeste, como nos arredores da cidade de Paulo Afonso, no norte da Bahia, a 534 km do frigorífico. Eles são pegos ou comercializados por agricultores pobres que trabalham no setor para fugir da fome, sob a supervisão de fazendeiros.
Em 9 de julho deste ano, por exemplo, a Polícia Militar da Bahia recebeu uma denúncia: centenas de jumentos que seriam abatidos no Frinordeste estavam morrendo de fome e sede na fazenda Boa Esperança, em Itatim. Quem os encontrou foi o tenente Benjamin Pereira e Silva, comandante do pelotão da PM na cidade.
"Infelizmente a situação era pior do que imaginávamos. Eram uns 200 animais, que tinham vindo da cidade de Rodelas. Eles estavam bem debilitados, machucados, muitas fêmeas prenhas, muitas abortando. Não tinha mais capim nem água, nenhuma comida para eles. [...] Encontramos muitos animais mortos, com urubus em cima. [...] Levamos o gerente para a delegacia e ele foi autuado por maus-tratos. No dia seguinte, voltamos à fazenda e não havia mais nenhum animal. Todos foram levados para outro lugar", relatou o comandante.
Outro problema envolvendo o comércio de jumentos é uma doença chamada mormo, zoonose contagiosa que afeta equídeos e asininos e pode ser transmitida ao ser humano. O índice de mortalidade é alto, segundo pesquisadores. Ela é transmitida por contato de gotículas contaminadas com olhos, pele, mucosas e aparelho respiratório.
O Conselho Regional de Medicina Veterinária do Estado da Bahia (CRMV/BA) acredita que, sem uma cadeia produtiva, o ritmo dos abates e a demanda chinesa pelo ejiao podem praticamente dizimar a população de jumentos no Nordeste em poucos anos, diagnóstico compartilhado também por entidades.
De acordo com a mídia, esse cenário foi registrado na própria China. Em 2000, o país tinha por volta de 9 milhões de cabeças, em 2016, o número caiu para dois milhões. Em 2000, a produção anual de ejiao era de 1,2 tonelada — já em 2016, foram cinco toneladas. Estima-se que o país precise de cinco milhões de peles de jumento por ano, mas, desde 2017, o estoque interno não é mais capaz de suprir a demanda.
© Folhapress / Eduardo KnappGaroto montado em jegue na zona rural da cidade de Araçuaí (MG) (foto de arquivo)
Garoto montado em jegue na zona rural da cidade de Araçuaí (MG) (foto de arquivo)
© Folhapress / Eduardo Knapp
Em Amargosa, o prefeito Júlio Pinheiro conta que o grupo chinês prometeu criar uma cadeia produtiva do animal, além de "trazer novas espécies para a região", o que ainda não aconteceu.
Por meio da Agência Estadual de Defesa Agropecuária da Bahia (Adab), o governo da Bahia afirma que não é de responsabilidade da agência criar uma cadeia produtiva.
O Ministério da Agricultura alega que é responsável pela fiscalização sanitária dos frigoríficos, mas que não está entre suas competências o "controle sobre o número de animais existentes ou criados, nem sobre riscos de extinção".
Já a JBS, que arrendou o espaço para o trio de empresários há três anos, afirmou que "toda a operação da planta mencionada está sob responsabilidade da empresa."
Já a JBS, que arrendou o espaço para o trio de empresários há três anos, afirmou que "toda a operação da planta mencionada está sob responsabilidade da empresa."