Corte de verba na Receita Federal é 'tiro no pé' para ingresso do Brasil na OCDE, diz analista
16:40 22.02.2022 (atualizado: 06:00 23.02.2022)
© REUTERS / Adriano MachadoO chanceler brasileiro Carlos França, o chefe da Casa Civil Ciro Nogueira e o ministro da Economia Paulo Guedes celebram o convite da OCDE para o Brasil ingressar no bloco. Eles falaram com a imprensa após o anúncio, no Palácio do Planalto, em Brasília, em 25 de janeiro de 2022
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A aceitação da OCDE para entrada do Brasil no órgão foi bastante celebrada, e, caso Brasília atinja este objetivo, o país teria uma posição única de negociação global: ao já fazer parte do BRICS, pode barganhar com países emergentes e do Ocidente ao mesmo tempo. No entanto, o corte nos recursos da Receita poderá dificultar esse percurso.
No final de janeiro, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) aceitou o pedido do Brasil para entrar na entidade, e desde então, Brasília recebeu a luz verde da organização para iniciar formalmente as negociações para ingresso na entidade.
Das 251 normas instituídas para fazer parte da OCDE, o Brasil já aderiu a 103 instrumentos, entretanto, uma decisão do governo Bolsonaro pode afetar o caminho a ser percorrido para que o país se torne membro da organização.
Após determinar o corte de R$ 1,7 bilhão no orçamento de 2022 destinado à Receita Federal, a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Unafisco) pretende denunciar à OCDE a medida, uma vez que tal ação pode paralisar atividades do eSocial. De acordo com os auditores, o orçamento disponibilizado para a Receita Federal caiu de R$ 3,8 bilhões para R$ 1,2 bilhão nos últimos três anos, segundo o jornal Extra.
"A OCDE tem o compromisso de combater a sonegação, o terrorismo e transações ilícitas internacionais. Mas, na medida em que enfraquece a Receita Federal com o corte orçamentário, o Brasil enfraquece o combate a tudo isso", afirmou o presidente da Unafisco, Mauro Silva citado pelo Poder 360.
Silva disse ainda que "a OCDE precisa saber que o Brasil está se comprometendo com algo, mas, na prática, está fazendo o contrário, ao desmontar a fiscalização tributária".
A Sputnik Brasil entrevistou especialistas para saber se a redução da verba da Receita complicará o ingresso do Brasil na organização.
© Folhapress / Lalo de AlmeidaAgentes da Receita Federal fazem apreensão de carga de cigarro contrabandeado do Paraguai, na cidade de Foz do Iguaçu, no Paraná (foto de arquivo)
Agentes da Receita Federal fazem apreensão de carga de cigarro contrabandeado do Paraguai, na cidade de Foz do Iguaçu, no Paraná (foto de arquivo)
© Folhapress / Lalo de Almeida
De fato, a verba retirada do orçamento da Receita Federal de 2022 é bastante significativa, uma vez que "corresponde a mais de 40% da dotação orçamentária da instituição", segundo Leonardo Trevisan, economista e mestre em História Econômica, doutor em Ciência Política pela USP e professor da ESPM e da PUC.
Para o especialista entrevistado para reportagem, a medida afeta todo o organismo da Receita e dificulta a execução de uma série de atividades importantes, como "a repressão ao contrabando e à sonegação e a vigilância de portos e aeroportos".
"Esta atitude do governo, nesta violência de corte, é um clássico 'tiro no pé' […]. A Receita Federal vigia uma dotação orçamentária de R$ 1,7 trilhão, para quem fiscaliza tamanha dotação, é evidente que diminuir uma oferta de verba vai prejudicar exatamente essa capitação [trilionária] de recursos com os quais os próprios programas do governo federal são viabilizados", explica Trevisan.
O economista também ressalta outro ponto preocupante da medida: ter sido determinada visando projeção eleitoral do atual governo para as eleições de 2022, já que a verba concederia aumento salarial a policiais federais, um dos grupos no qual a gestão Bolsonaro mais tem apoiadores.
"De algum modo, esse fato [o corte na Receita para aumento do salário] tem alguma razão de ser porque não há nenhuma resposta contrária do próprio Ministério da Fazenda sobre a redução da verba."
© Carolina Antunes / Palácio do Planalto / CC BY 2.0Visita ao Posto da Polícia Rodoviária Federal em São Paulo. Na foto, ao meio, presidente Jair Bolsonaro, seu filho deputado Eduardo Bolsonaro à esquerda e em primeiro André Mendonça, ministro do STF, 20 de setembro de 2020
Visita ao Posto da Polícia Rodoviária Federal em São Paulo. Na foto, ao meio, presidente Jair Bolsonaro, seu filho deputado Eduardo Bolsonaro à esquerda e em primeiro André Mendonça, ministro do STF, 20 de setembro de 2020
© Carolina Antunes / Palácio do Planalto / CC BY 2.0
Caso a determinação seja levada adiante, Trevisan volta a sinalizar a gravidade da ação, que deve gerar apreensão até mesmo no Congresso, visto que "toda dotação orçamentária do país depende, justamente, do controle que a Receita Federal faz com sonegação e contrabando […], se com o corte a instituição tiver menos chance de fiscalização, é evidente que vamos ter um alto prejuízo na arrecadação".
"Essa medida é preocupante e pode levar a consequências bastante graves para economia brasileira", analisa.
Queixa dos auditores à OCDE
Sobre o formato de queixa escolhido pela Unafisco para ser feita à OCDE, Trevisan elucida que o padrão está exatamente dentro do que a organização espera, pois um dos propósitos do "Clube dos Ricos" – como a OCDE é popularmente conhecida – é o de fazer com que a "captação de recursos seja feita sobre os que possuem mais riqueza e pagam mais impostos".
Para isso, há uma "proteção de toda a estrutura de vigilância para que a captação venha dos que mais tem e não dos que menos tem", ou seja, justamente o papel desenvolvido pela Receita Federal.
"O que está sinalizado com esse corte, e por isso a Unafisco se volta à denúncia, é que o Brasil não está cumprindo uma das primeiras determinações da adesão à organização que é o caráter progressivo na cobrança tributária. Além disso, todos os itens da Receita Federal fazem parte de um formato de reforma tributária que o país precisa, sem dúvidas, cumprir para poder ingressar na OCDE."
A busca pela integração brasileira à organização é antiga, e vem desde o governo Temer (2016-2019), o qual visava uma recuperação econômica com bases liberais, sendo tal política perpetuada no governo Bolsonaro, segundo Vinícius Rodrigues Vieira, professor de Relações Internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado e da FGV.
Sendo esse um dos pontos altos da política externa da atual gestão, a Unafisco sabe da importância do ingresso brasileiro no órgão, portanto, os auditores usam a queixa "como um instrumento para fazer valer suas posições domésticas", diz o professor entrevistado pela Sputnik Brasil.
© Foto / CC BY 2.0 / Alan Santos / Palácio do PlanaltoEncontro Bilateral com Jair Bolsonaro e o secretário-geral da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), Mathias Cormann, Itália, 30 de outubro de 2021
Encontro Bilateral com Jair Bolsonaro e o secretário-geral da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), Mathias Cormann, Itália, 30 de outubro de 2021
© Foto / CC BY 2.0 / Alan Santos / Palácio do Planalto
O intuito do Brasil na organização, segundo o especialista, é atrair investimentos e dar um "selo de qualidade" ao país, no entanto, Vieira ressalta que não basta ser membro da organização para "alcançar progresso econômico", e cita como referência o México e o Chile, que aderiram à OCDE, e não obtiveram grandes transformações benéficas em sua economia.
Tal ponto também foi alertado pelo ex-chanceler da gestão Lula, Celso Amorim, no final de janeiro, quando verbalizou sobre o assunto: "[…] Essa coisa de 'pseudosselo' de qualidade já era. O Chile teve uma crise do neoliberalismo brutal nas ruas. O México, [...] foi um dos que mais sofreram com a crise do [banco] Lehman Brothers [2008]. Ser da OCDE não fez com que o México recebesse mais investimentos que o Brasil", declarou Amorim conforme noticiado.
Contudo, Vieira lembra que o Brasil já faz parte do BRICS, e caso realmente ingresse na OCDE, teria uma "posição única mundial de barganha", pois ao mesmo tempo que conversa com países emergentes como China e Rússia no BRICS, também dialoga com "nações do Ocidente, de economias democráticas e capitalismo de mercado tradicionais" presentes na organização.
© AFP 2023 / Patrick SemanskyO secretário de Estado Antony Blinken (à esquerda) se encontra com o ministro das Relações Exteriores italiano Luigi Di Maio (à direita) em reunião da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em Paris, em 6 de outubro de 2021
O secretário de Estado Antony Blinken (à esquerda) se encontra com o ministro das Relações Exteriores italiano Luigi Di Maio (à direita) em reunião da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em Paris, em 6 de outubro de 2021
© AFP 2023 / Patrick Semansky
Apesar de ter sido revelado através de documentos do Pandora Papers que membros do governo Bolsonaro têm dinheiro em paraísos fiscais, o professor não acredita que uma certa dificuldade para inserção do Brasil na OCDE ocorra por grandes corrupções, mas sim por práticas mais "domésticas" supostamente efetuadas pelo mandatário.
"Por exemplo, a notória ligação do presidente com grupos que estão à margem da lei, como milicianos no Rio de Janeiro […]; sua ligação com o disparo de mensagens em massa através de aplicativos como Telegram para sua campanha [...]. E em relação a grandes escândalos, poderíamos citar sua gestão na pandemia, como a compra da cloroquina do governo dos EUA e a compra e produção deste medicamento por parte do Exército […]."
Outras integrações possíveis para o Brasil
Questionado sobre outros tipos de adesões e integrações que o Brasil poderia desenvolver com prioridade, Vieira cita que o país teria ganhos se "barganhasse de forma mais contundente dentro do próprio BRICS, principalmente com a China".
Ao mesmo tempo, solicitar o status de observador na Organização para Cooperação de Xangai (OCX) seria benéfico para ampliar sua participação internacional.
Outro ponto ressaltado pelo especialista, é a consideração por parte do governo brasileiro para efetuar mais acordos bilaterais de comércio "sem renunciar ao Mercosul", visto que "o bloco é fundamental para que o Brasil volte à sua posição de potência média na região a qual negocia com todo mundo".
© Foto / Clauber Cleber Caetano/ Palácio do Planalto / CC BY 2.0 LIX Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul e Estados Associados através de videoconferência, 17 de dezembro de 2021
LIX Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul e Estados Associados através de videoconferência, 17 de dezembro de 2021
© Foto / Clauber Cleber Caetano/ Palácio do Planalto / CC BY 2.0
Além da importância de regressar ao nível de potência regional, Vieira sublinha que, no atual momento, o país está "de costas para América Latina", e que seu retorno à Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) seria um passo valoroso a ser dado.
"O Brasil tem que pensar em si. Quantos mais organizações ele fizer parte, maior o seu poder de negociação para ter concessões e parcerias oriundas tanto do Ocidente quanto das potências emergentes", complementa o especialista.