'Não dá pra ficar em cima do muro': Brasil deverá repensar sua posição frente ao declínio do dólar
13:23 23.03.2022 (atualizado: 13:25 23.03.2022)
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O Brasil mantém 86% de suas reservas internacionais em dólares norte-americanos. A decisão dos EUA e aliados de congelar as reservas russas deveriam fazer o governo brasileiro repensar onde manter os seus recursos?
Nesta quarta-feira (23), o presidente da Rússia, Vladimir Putin, instruiu a empresa estatal Gazprom para passar a receber pagamentos internacionais pelo seu gás natural na moeda nacional russa, o rublo.
O presidente também instruiu o Banco Central russo para que estabeleça mecanismos de pagamento com a Europa em rublos no prazo de uma semana.
A decisão do líder russo é uma resposta às sanções impostas pelo Ocidente, que dificultam o uso do dólar e do euro na economia russa.
© Sputnik / Mikhail KlimentievVladimir Putin, presidente da Rússia, durante videoconferência com Conselho de Segurança russo
Vladimir Putin, presidente da Rússia, durante videoconferência com Conselho de Segurança russo
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A sanção considerada mais contundente foi a imposta pelos EUA e aliados ao Banco Central da Rússia. Em menos de 24 horas, o emprestador de última instância de Moscou perdeu o acesso a 60% de seus US$ 643 bilhões (cerca de R$ 3 trilhões) em reservas.
O prejuízo foi causado por esse percentual ter sido guardado em dólares, euros e títulos da dívida de países ocidentais.
"Não faz sentido para nós vender os nossos produtos para a União Europeia, para os EUA, e receber o pagamento em dólares, euros e várias outras moedas. Por isso, eu decidi implementar no período mais curto possível medidas de transferências de pagamentos", considerou Putin.
A medida será imposta somente para contratos com países considerados hostis à Rússia, nos quais o Brasil não está incluído.
Resposta às sanções
As sanções ocidentais impostas após o início da operação militar russa na Ucrânia geraram desvalorização da moeda russa e escassez de dólares na economia.
"Apesar de a Rússia ter tido seus recursos bloqueados, ela ainda precisa de dólares. Por isso deve atrair fluxo de capitais", disse à Sputnik Brasil o mestre em economia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) David Deccache. "Moscou precisou aumentar a taxa de juros doméstica para atrair esse fluxo, de forma a segurar a desvalorização do câmbio."
De fato, para conter o efeito das sanções ocidentais, o Banco Central russo elevou sua taxa de juros de 9,5% a 20% entre fevereiro e março.
"A alta na taxa de juros é uma medida anticrise temporária. Quando a situação se estabilizar, a taxa será reduzida", disse a presidente do Banco Central russo, Elvira Nabiullina, em coletiva de imprensa realizada no dia 18 de março.
© AP Photo / Pavel GolovkinUma mulher passa por uma tela de uma casa de câmbio exibindo as taxas de câmbio de dólar americano e euro para rublos russos, em Moscou, Rússia, 9 de março de 2020
Uma mulher passa por uma tela de uma casa de câmbio exibindo as taxas de câmbio de dólar americano e euro para rublos russos, em Moscou, Rússia, 9 de março de 2020
© AP Photo / Pavel Golovkin
Na mais recente reunião do Banco Central russo, em 21 de março, não houve novo aumento da taxa básica de juros.
De acordo com Decacche, a alta na taxa de juros pode gerar efeitos colaterais na economia, como a desaceleração da geração de empregos, mas é um mecanismo necessário para conter a crise cambial e desvalorização do rublo.
"A crise cambial tem outro efeito deletério sobre a economia doméstica que é a inflação. O processo de desvalorização cambial implica em uma elevação muito rápida do processo inflacionário", notou o economista.
Aumento de salários e pensões
A queda do valor do rublo e a pressão inflacionária levaram o presidente russo a anunciar, no dia 16 de março, aumento no salário mínimo, aposentadorias e pensões na Rússia.
"A política fiscal do governo [russo] é a prova de que o governo mantém sua autonomia monetária e é capaz de estimular a economia doméstica", considerou Decacche.
Segundo ele, aumentos como o anunciado por Putin "têm o objetivo de diminuir as perdas da população perante a inflação", uma vez que a desvalorização do câmbio "implica em perda real para os trabalhadores".
© AP Photo / Pavel GolovkinTradicionais bonecas russas matrioskas com retratos do presidente russo Vladimir Putin e do presidente americano Joe Biden em uma loja em Moscou, 6 de dezembro de 2021
Tradicionais bonecas russas matrioskas com retratos do presidente russo Vladimir Putin e do presidente americano Joe Biden em uma loja em Moscou, 6 de dezembro de 2021
© AP Photo / Pavel Golovkin
O Banco Central russo reconheceu que a economia nacional deverá lidar com pressões inflacionárias no curto prazo.
"A economia russa está entrando em uma fase de reajustes estruturais de larga escala. Isso será acompanhado por um inevitável, mas temporário, período de alta na inflação", declarou o Banco Central.
Decacche alerta que o aumento de salários contribui para a pressão inflacionária, que só poderá ser controlada quando o câmbio russo se estabilizar.
"É um conflito distributivo. O salário aumenta e o empresário aumenta seu preço, porque o salário faz parte do seu custo [...] Isso gera uma pressão inflacionária, que só é interrompida quando o câmbio estabiliza", explicou o economista.
A boa notícia é que a moeda russa vem recuperando seu valor, apesar do cenário desfavorável. Após a alta nas taxas de juros, o rublo já havia se apreciado em relação ao dólar.
Nesta terça-feira (22), após a reabertura da Bolsa de Moscou depois de longo período de pausa nas transações, o rublo cresceu ainda mais. Fatores externos, como o aumento do preço do petróleo, teriam impactado positivamente a moeda russa.
Outro fator que mantém a confiança de investidores na economia russa é a manutenção da sua presidente Elvira Nabiullina no comando do Banco Central do país. Em 18 de março, o presidente russo nomeou Nabiullina para mais um mandato de cinco anos, que deve ser confirmado pelo parlamento local.
© Sputnik / Vladimir FedorenkoPresidente do Banco Central da Federação Russa Elvira Nabiullina.
Presidente do Banco Central da Federação Russa Elvira Nabiullina.
© Sputnik / Vladimir Fedorenko
Conhecida pela aplicação de políticas macroeconômicas ultraortodoxas, Nabiullina está à frente da instituição desde 2013. Sua gestão é apontada como uma das responsáveis pela recuperação econômica russa após a imposição de sanções econômicas em 2016.
E o Brasil com isso?
Apesar das medidas de curto prazo serem necessárias para manter a inflação e o comércio nos trilhos, Decacche nota que a operação militar russa abriu um novo capítulo na economia mundial.
"O sistema antigo morreu, estamos vivendo as dores do parto de um novo sistema monetário internacional", garante o economista. "Estamos passando por uma mudança sistêmica de consequências históricas profundas."
O bloqueio dos bens do Banco Central russo pode levar governos de outros países a reconsiderarem a manutenção de suas reservas em dólares e euros.
"Está claro que hoje a estratégia adequada, principalmente para países que possuem recursos naturais e estão sujeitos a interferências políticas externas, é diversificar reservas e recorrer a outras moedas, como a chinesa", acredita o economista. "Isso é mais seguro tanto geopoliticamente, quanto do ponto de vista de diversificação de riscos."
© Folhapress / Charles ShollFachada do endereço do Banco Central em São Paulo, em 14 de maio de 2018
Fachada do endereço do Banco Central em São Paulo, em 14 de maio de 2018
© Folhapress / Charles Sholl
O Brasil possui atualmente uma reserva de cerca de US$ 362,2 bilhões. De acordo com o Relatório de Gestão de Reservas do Banco Central do Brasil, publicado em março de 2021, 86,03% do dinheiro dos brasileiros está guardado em dólar norte-americano, 7,85% em euro, 2,02% em libra esterlina, 1,72% em iene, 1,19% em ouro e somente 1,21% em outras moedas.
"A dificuldade é que se um país começa a sinalizar que vai aumentar suas reservas em outras moedas, como a moeda chinesa, ele obviamente estará comprando uma briga com os EUA", considera Decacche.
Segundo ele, o Brasil deverá formular uma estratégia de longo prazo para se posicionar nessa nova conjuntura econômica internacional.
"O próximo governo do Brasil vai ter que lidar com esse conflito e se posicionar de forma muito estratégica, porque não vai dar para ficar em cima do muro. É um grande desafio geopolítico, e posicionamentos serão necessários", concluiu o economista.