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'Apartheid educacional', meta esquecida e exemplo chinês: os futuros desafios da educação no Brasil

© Folhapress / Rubens CavallariEstudantes no primeiro dia de aula presencial na Escola Estadual Raul Antônio Fragoso, em Pirituba, na Zona Oeste de São Paulo, em 8 de fevereiro de 2021
Estudantes no primeiro dia de aula presencial na Escola Estadual Raul Antônio Fragoso, em Pirituba, na Zona Oeste de São Paulo, em 8 de fevereiro de 2021 - Sputnik Brasil, 1920, 09.08.2022
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Entre o projeto de "homeschooling", evasão e defasagem escolar, aumento da desigualdade educacional e redução dos investimentos, de que forma a situação econômica brasileira pode inviabilizar melhorias? A Sputnik Brasil conversou com especialistas para entender os desafios do próximo governo na educação, uma das áreas mais afetadas pela pandemia.
Todo mundo já disse ou ouviu alguma vez que a educação deveria ser prioridade no Brasil. O maior problema não parece ser identificar o setor como estratégico para o desenvolvimento do país, mas sim construir um ambiente favorável para um amplo planejamento, com metas de longo prazo, independentemente de governos e crises econômicas.
De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Brasil ocupa a 84ª posição no ranking mundial do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que tem a educação como importante fator de cálculo.
Segundo o último levantamento — referente ao ano de 2019 e que ainda não inclui impactos da pandemia de COVID-19 —, os brasileiros estudam, em média, por oito anos, um pouco abaixo da média mundial, de 8,5 anos. Para se ter uma ideia, os 23 primeiros colocados no ranking do IDH somam 12 anos ou mais nesse quesito.
Já no último exame do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA, na sigla em inglês), de 2018, os estudantes brasileiros obtiveram notas abaixo da média mundial nas três áreas avaliadas: leitura, matemática e ciências.
No exame, realizado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), apenas 2% dos alunos atingiram os níveis mais altos de proficiência (nível 5 ou 6) em ao menos uma disciplina. A taxa média entre os países avaliados pela OCDE é de 16%.
Além disso, 43% dos brasileiros pontuaram abaixo do nível mínimo de proficiência (nível 2) em todas as três disciplinas — a média, segundo a OCDE, é de 13%.
© Sputnik / Lucas BaldezAlunos da escola intercultural Brasil–Rússia, Colégio Estadual Tenente Otavio Pinheiro, em Belford Roxo, na Baixada Fluminense (RJ), em sala de aula no dia 15 de fevereiro de 2022, data da inauguração do colégio, o primeiro russo-brasileiro do país
Alunos da escola intercultural Brasil–Rússia, Colégio Estadual Tenente Otavio Pinheiro, em Belford Roxo, na Baixada Fluminense (RJ), em sala de aula no dia 15 de fevereiro de 2022, data da inauguração do colégio, o primeiro russo-brasileiro do país - Sputnik Brasil, 1920, 09.08.2022
Alunos da escola intercultural Brasil–Rússia, Colégio Estadual Tenente Otavio Pinheiro, em Belford Roxo, na Baixada Fluminense (RJ), em sala de aula no dia 15 de fevereiro de 2022, data da inauguração do colégio, o primeiro russo-brasileiro do país. Foto de arquivo
Mesmo com índices de educação bem aquém dos de países desenvolvidos, o Brasil vem sofrendo redução de investimento na educação nos últimos cinco anos.
Uma pesquisa divulgada pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) indicou que o gasto público com educação em 2021 atingiu o menor patamar desde 2012, em valores atualizados.
De 2016 a 2020, as despesas efetivadas, incluindo "restos a pagar", corrigidas pela inflação, despencaram de R$ 146,7 bilhões para R$ 118,5 bilhões. No ano passado, embora o valor das despesas autorizadas no setor fosse de R$ 129,8 bilhões, o Brasil investiu R$ 118,4 bilhões.
Entre 2010 e 2014, o investimento saltou de R$ 92,6 bilhões para R$ 150,3 bilhões. Em 2015, houve redução para R$ 143,3 bilhões, em comparação com o ano anterior. A pesquisa foi divulgada em abril deste ano pelo portal G1.

"O quadro da educação brasileira foi profundamente alterado, não apenas no contexto da pandemia, mas sobretudo a partir de mudanças que ganharam uma nova intensidade a partir de 2016", aponta Roberto Leher, ex-reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ, à Sputnik Brasil.

© Folhapress / Caio Basilio/Futura PressSala de aula da Escola Municipal João de Camargo, em São Cristóvão, no Rio de Janeiro, no dia 3 de março de 2021
Sala de aula da Escola Municipal João de Camargo, em São Cristóvão, no Rio de Janeiro, no dia 3 de março de 2021 - Sputnik Brasil, 1920, 09.08.2022
Sala de aula da Escola Municipal João de Camargo, em São Cristóvão, no Rio de Janeiro, no dia 3 de março de 2021. Foto de arquivo
Segundo ele, de 2016 para 2017, foram implementadas "mudanças curriculares muito negativas" na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento de referência obrigatório para elaboração de currículos escolares para educação infantil, ensino fundamental e ensino médio no país.
Leher afirma que a nova orientação esvaziou "de maneira muito radical o conteúdo científico, humanístico, histórico, crítico e tecnológico na educação básica".

"Há uma combinação muito negativa em um contexto de novas dimensões de regressão com o governo [de Jair] Bolsonaro, que tem o óbvio propósito de deslocar a escola, a educação e a universidade para o teatro de operações da chamada guerra cultural", disse o ex-reitor da UFRJ (entre 2015 e 2019).

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Para o especialista, doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP), as discussões em torno da educação foram deslocadas para a esfera do embate, com a "difusão de formas de pensamento e valores hostis à ciência, explicitamente negacionistas e irracionalistas, valorizando uma falsa noção de moralidade".
"Hoje temos na educação brasileira uma ofensiva ideológica que busca desqualificar os professores e o pensamento crítico. Vimos isso no contexto da pandemia de maneira inédita em termos da ofensiva irracionalista sobre o conjunto da educação brasileira", afirmou.
Leher diz que, durante a pandemia, não houve uma política nacional para viabilizar o acesso à Internet em escolas públicas.
Ele lembra que, em dezembro de 2020, na contramão das necessidades contemporâneas reforçadas pelo coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro (PL) vetou um artigo do novo marco regulatório do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST) que determinava que parte dos recursos deveria servir para universalizar a banda larga nas escolas públicas até 2024.
Segundo a Agência Senado, o presidente não apresentou estimativa do impacto orçamentário e financeiro ao alegar que o artigo criaria "despesas públicas".

"Tivemos uma vulnerabilidade nas escolas. Quase a totalidade dos estudantes do ensino médio não teve momentos síncronos de aula virtual, com a possibilidade de dialogar. Temos um quadro em que crianças, sobretudo jovens de classe trabalhadora mais explorada, ficaram completamente vulneráveis e desconectadas", lamentou.

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Para Lincoln de Araújo Santos, professor da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e secretário municipal de Educação de Niterói, a educação nacional passa por "um dos piores momentos da história republicana" do Brasil.

"O governo do atual presidente vem promovendo um verdadeiro desmonte quanto ao desenvolvimento de políticas públicas educacionais. Com o sufocamento financeiro e orçamentário, a pasta da Educação, tão respeitada pela nação, virou um balcão de negócios", afirmou Santos à Sputnik Brasil.

Para ele, a educação nacional começou a se deteriorar a partir de "reformas ultraneoliberais", iniciadas no governo de Michel Temer (MDB), "principalmente com a supressão dos investimentos do pré-sal e com o teto de controle de gastos".

"Não houve nenhuma política que buscasse promover justiça educacional da população estudantil no país", disse.

O governo Bolsonaro já teve quatro ministros da Educação. O atual ministro, Victor Godoy, assumiu a pasta em 29 de março, após denúncias de corrupção no ministério em favorecimento de pastores com verbas públicas.
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Por que 'homeschooling' é refutado por especialistas?

A Câmara dos Deputados aprovou em 18 de maio o texto-base do projeto de lei que regulamenta a prática do ensino domiciliar.
Agora em tramitação no Senado Federal, o texto do PL 1388/2022 altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) para admitir o "homeschooling" na educação básica (pré-escola, ensino fundamental e ensino médio).
Uma das bandeiras de campanha de Bolsonaro, o projeto é rejeitado por especialistas em educação.
Para Roberto Leher, da UFRJ, o projeto é uma proposição de setores ortodoxos do campo religioso com o objetivo de garantir a manutenção de valores e conceitos das famílias conservadoras.
Ele explica que para esses segmentos a educação deve estar "sob controle da família, e não das instituições públicas", com o núcleo familiar definindo "o tipo de formação humana".
Lincoln Santos, professor da UERJ, avalia que o "homeschooling" é o "sinal evidente de destruição do princípio educativo inclusivo, através da escola pública".
"É direito da criança a socialização, e a aprendizagem se manifesta no coletivo, na conjunção de valores. A escola pública é o sinal da construção de uma sociedade democrática, justa e equânime", disse.
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Desafios para os próximos governos

Segundo Leher, a condição para se discutir os desafios que estão por vir nos próximos anos "é mudar a orientação política do país". Para ele, a lógica em curso no país é de "apartheid educacional e negação bruta dos direitos da educação".
O especialista lembra que o Brasil está cada vez mais longe de cumprir o Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado em 2014 e que estará em vigor até 2024. A meta é alocar 10% do produto interno bruto (PIB) à educação.
"Não cumprimos e não vamos cumprir a meta. Estamos estagnados na ordem dos 4,5%, não chega a 5%. E isso porque o PIB está encolhido. Se estivéssemos em um período de expansão, estaríamos com uns 3,8%, o mesmo do período correspondente à ditadura", recordou.
Para o ex-reitor da UFRJ, os dados mostram "um estrangulamento feroz" dos gastos com a educação no país.

"Isso precisa, obviamente, ser revertido. Precisamos de projeções sobre o futuro da educação, redimensionando os recursos públicos, para termos um sistema nacional de educação de fato integrado, articulado com professores valorizados, em que as instituições públicas possam ser um eixo da formação docente."

Já Santos afirma que o Brasil precisa retomar "o ideal nacional de desenvolvimento". Segundo ele, os governos de Temer e Bolsonaro "impuseram ao país uma destruição de um desenvolvimento nacional".

"A educação está vinculada efetivamente a uma ideia de nação e ao interesse da soberania nacional, que é a capacidade de autodeterminação de um povo em resolver seus próprios problemas e decidir trilhar seu próprio futuro. País nenhum tem sua própria soberania se não tiver um investimento maciço em educação, em ciência, em tecnologia e em um amplo aparato do desenvolvimento econômico e social", apontou.

O professor da UERJ sugere que o Brasil se inspire em países europeus e em asiáticos, como a China e o Japão, que conseguiram "garantir sua soberania".

"Está na hora de o Brasil reencontrar a sua história e colocar a educação no primeiro patamar de investimentos sociais para o próprio país", disse.

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Exemplo que vem da China

Para Leher, a exemplo do que ocorre na China, os grandes desafios "somente serão exequíveis" se o Brasil não permitir que a educação seja convertida em "mercadoria vinculada ao controle financeiro".

"Precisamos proibir a existência de organizações educacionais de capital aberto. Não podemos permitir que haja formação básica, que dá diploma, seja educação básica, superior, mestrado ou doutorado, por grupos com controle financeiro, com ação na bolsa de valores", avaliou.

Ele aponta que recentemente a China proibiu instituições desse perfil de atuarem na educação básica. Segundo o especialista, não é possível haver projeções para a formação humana no Brasil com essas organizações hegemonizando o setor.
Leher diz que primeiro é preciso alinhar a legislação à Constituição Federal. Ele afirma que a Constituição é "explícita" ao determinar que a verba pública só deve ser direcionada a instituições privadas sem fins lucrativos.
"Precisamos voltar a acreditar na educação, na ciência, nos valores do público. Uma vez viabilizada a mudança política, temos um debate amadurecido, mais profundo, para onde queremos que o país vá, e isso significa mudanças econômicas muito substantivas", disse.
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