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Pelé 'destruiu estigmas raciais' e influenciou identidade brasileira, dizem pesquisadores

© AFP 2023 / Nelson AlmeidaUm visitante olha uma foto de Pelé exibida no Museu Pelé, em Santos, Brasil, 27 de dezembro de 2022
Um visitante olha uma foto de Pelé exibida no Museu Pelé, em Santos, Brasil, 27 de dezembro de 2022 - Sputnik Brasil, 1920, 30.12.2022
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Nesta quinta-feira (29), Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, tricampeão mundial e sinônimo de futebol, faleceu aos 82 anos. A Sputnik Brasil ouviu jornalistas e pesquisadores para discutir o legado da carreira do eterno camisa 10 para o esporte, para a construção da identidade nacional e para a população negra do Brasil.
Há semanas internado no hospital Albert Einstein, na capital paulista, onde tratava um câncer no cólon, Pelé morreu nesta quinta-feira (29). Sendo uma das figuras mais famosas do século XX, a morte do ex-jogador repercutiu mundialmente.

Com uma carreira brilhante, Pelé conquistou, ao lado da Seleção Brasileira, as Copas do Mundo de 1958, 1962 e 1970. No Santos, onde jogou praticamente a carreira toda, também empilhou títulos, entre eles duas Libertadores e dois Mundiais de Clubes, viajando o mundo inteiro em partidas de exibição com a equipe. Em um dos episódios mais notórios dessa trajetória no clube, chegou a paralisar uma guerra civil na Nigéria.

Para discutir o legado do "atleta do século", a Sputnik Brasil ouviu pesquisadores de diversas áreas, que apontaram as contribuições de Pelé para além dos campos de futebol, desde sua ascensão em meio a um mundo ainda marcado pela segregação racial, à sua contribuição para a profissionalização do esporte e a formação da identidade brasileira.
© Folhapress / Bruno SantosEdson Arantes do Nascimento, o Pelé, campeão nas Copas do Mundo de 1958, 1962 e 1970, no museu que leva seu nome, em Santos (SP)
Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, campeão nas Copas do Mundo de 1958, 1962 e 1970, no museu que leva seu nome, em Santos (SP) - Sputnik Brasil, 1920, 30.12.2022
Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, campeão nas Copas do Mundo de 1958, 1962 e 1970, no museu que leva seu nome, em Santos (SP)

Pelé foi um 'destruidor de estigmas' racistas

Apesar de Pelé não ter sido conhecido como um ativista contra o racismo, especialistas na questão racial brasileira atribuem a ele um legado importante nessa frente. Na avaliação do pesquisador Juarez Tadeu de Paula Xavier, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e militante histórico do movimento negro, "o legado de Pelé para população negra brasileira é extraordinário, enorme".
Segundo o professor, é preciso observar que o Brasil construiu políticas públicas de segregação e violência contra a população negra a partir do século XIX, incluindo a negação da humanidade e estigma dos negros brasileiros. Nesse sentido, Pelé quebrou com a lógica racista dessa visão.

"O Pelé desmonta tudo isso com a sua genialidade, especialmente a partir de 1959, quando se torna um ícone mundial. Então toda a ideia que se tinha de o negro ser incapaz de ser criativo, o Pelé destruiu; incapaz de compreender os processos políticos, econômicos, sociais, o Pelé destruiu; incapaz de expressar de forma ampla a sua humanidade, o Pelé destruiu. Então a figura dele destruiu, destroçou, todos os preconceitos e estigmas de discriminação em relação à população negra", explica o pesquisador à Sputnik Brasil.

Xavier aponta que com o surgimento e o sucesso inegável da figura de Pelé, caem "o mito da fabulação da incapacidade da população negra" e a ideia de que o negro não seria um sujeito de direitos.

"Esse é o grande legado de Pelé para o Brasil, de modo geral, e para a população negra, em especial. É o fim dos estigmas. Ele questiona os estigmas com a sua genialidade, ele provoca a necessidade de uma mudança, de pensar o negro a partir de um novo prisma, diferente do que vigia até o século XIX nesse país. Ele abre possibilidade para que o negro, como cidadão, reivindique políticas públicas e ele mostra a iniquidade do racismo na sociedade brasileira, em que mais de 60% da população é negra. Então ele deu uma grande contribuição nesse sentido", afirma.

O pesquisador salienta que a Seleção Brasileira que venceu a Copa de 1958 com Pelé quebrou um paradigma racial que vigia no Brasil até então. Xavier lembra que a presença negra chegou a ser proibida no time nos anos 1920 por decisão do então presidente brasileiro, Epitácio Pessoa.
© FolhapressPelé durante sua atuação no time do Santos
Pelé durante sua atuação no time do Santos - Sputnik Brasil, 1920, 30.12.2022
Pelé durante sua atuação no time do Santos
Essa estigmatização ficou explícita também em episódios posteriores, como o massacre da opinião pública contra o goleiro Barbosa, um homem negro, responsabilizado pela derrota brasileira na final de 1950 da Copa do Mundo, e em declarações de dirigentes do futebol brasileiro nos anos seguintes.
"E aí vem 1958 e um menino 17 anos muda tudo. Provoca uma mudança em tudo, mostra genialidade, competência, destreza, inteligência, estratégia — tudo aquilo que fora negado até 1954, Pelé destrói isso com a sua genialidade. E isso traz questões importantes porque, a partir de 1958, todo jogador negro — garoto, criança — queria ser Pelé", aponta, acrescentando que a trajetória do gênio do futebol mudou a lógica anterior e tornou a presença negra no futebol algo positivo.
Para Xavier, apesar da importância inegável de Pelé para o futebol brasileiro, o racismo ainda será uma questão importante na disputa pela memória e pelo legado do eterno jogador.

"Nesse sentido, acho que o movimento negro tem que ter uma ação política. Não, obviamente, inventando a imagem Pelé, mas problematizando essa questão para compreender a dialética do que ele provocou em relação à presença do negro [...]. Precisamos ir além da aparência e observar a essência do fenômeno Pelé [...]. Pelé teve um papel importante na humanização do negro na sociedade brasileira. Isso eu não tenho dúvida alguma", diz o professor.

'Um inventor da brasilidade'

Em entrevista à Sputnik Brasil, o escritor e historiador Luiz Antonio Simas, autor de "Maracanã: quando a cidade era terreiro", afirma que Pelé talvez represente o ápice de "um futebol de sonho, de imaginação".
"Pelé talvez tenha sido o primeiro jogador — e acho que ninguém conseguiu isso tanto como ele, até hoje — que consolidou a relação, a união, entre o sonho e o concreto. Era um tremendo de um atleta e ao mesmo tempo era um mágico com a bola nos pés. Então é por isso que ele é alçado à categoria do maior de todos", avalia Simas.
Na visão do escritor, Pelé, além de um excelente atleta, é também um dos responsáveis pela criação da identidade brasileira.

"O Pelé, mais do que um jogador de futebol, é um inventor da brasilidade. Isso porque, em um país com quatro séculos de escravidão ver um descendente de pessoas que foram escravizadas furar a bolha da exclusão social — que sempre caracterizou a nossa história — e chegar ao auge de ser o brasileiro mais conhecido de todos os tempos, se para o futebol, o Pelé é o ápice, para o Brasil, o Pelé é um inventor da brasilidade, é um dos inventores de um país que a gente sonha que seja mais generoso, mais imaginativo. Pelé é tudo isso", avalia.

© Sputnik / Solon NetoPelé e Garrincha retratados na rua Pereira Nunes, no Rio de Janeiro (RJ). Brasil, 10 de novembro de 2022
Pelé e Garrincha retratados na rua Pereira Nunes, no Rio de Janeiro (RJ). Brasil, 10 de novembro de 2022 - Sputnik Brasil, 1920, 30.12.2022
Pelé e Garrincha retratados na rua Pereira Nunes, no Rio de Janeiro (RJ). Brasil, 10 de novembro de 2022

Pelé marcou ruptura no futebol profissional

O sociólogo Ronaldo Helal, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e coordenador do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte (LEME), acredita que Pelé, além do talento, revolucionou o futebol profissional em relação à importância da preparação física.
"O Pelé, não só para o Brasil, mas mundialmente, marcou uma ruptura na forma de se encarar é o futebol profissional. No caso brasileiro, eu diria que — apesar de ele ter sido muito cobrado durante toda a sua carreira de que ele poderia ter feito mais pelos projetos no Brasil — acho que a imagem dele foi extremamente importante, de mostrar para o mundo um atleta negro e tricampeão, o atleta do século. Então nesse sentido, é um ícone, fantástico, incomparável do Brasil e para o mundo", avalia Helal em entrevista à Sputnik Brasil.
O sociólogo aponta que o Brasil saiu da década de 1930 "com uma certa fragilidade na noção do que era ser brasileiro". Helal, lembra que a ideia de brasilidade passou a ser discutida por diversos autores, como o jornalista Mário Filho e os escritores Sergio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e José Lins do Rêgo. Segundo ele, o pensamento brasileiro passou a enxergar no futebol um "motor para juntar uma nação de dimensão continental como o Brasil". Nesse sentido, o sucesso de Pelé a partir de 1958 ajuda a formar a identidade brasileira.

"Essa equação de Seleção Brasileira e nação brasileira, identidade nacional, praticamente se consolida ali. Eu digo sempre que essa equação vai perdendo força nas últimas décadas por conta da globalização, da ida dos melhores jogadores para a Europa, mas acho até que hoje em dia ela não é tão importante quanto foi naquele momento. Naquele momento, era importante você ter essa noção de brasilidade e o futebol, muito por conta do Pelé, acabou sendo bastante exitoso nessa construção de identidade nacional", afirma.

© AP Photo / Mídia AssociadaA rainha Elizabeth II com o príncipe Philip apresentam uma taça a Pelé, no estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro (RJ), Brasil, durante uma turnê pela América do Sul, em 10 de novembro de 1968
A rainha Elizabeth II com o príncipe Philip apresentam uma taça a Pelé, no estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro (RJ), Brasil, durante uma turnê pela América do Sul, em 10 de novembro de 1968 - Sputnik Brasil, 1920, 30.12.2022
A rainha Elizabeth II com o príncipe Philip apresentam uma taça a Pelé, no estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro (RJ), Brasil, durante uma turnê pela América do Sul, em 10 de novembro de 1968

Sinônimo de excelência

O jornalista Leandro Iamin descreve Pelé como o "mais impactante atleta e jogador do século XX" e lembra que o brasileiro é uma das figuras midiáticas globais mais conhecidas do planeta. Iamin ressalta que a permanência do "atleta do século" por quase toda a carreira no futebol brasileiro, algo incomum para os grandes talentos da atualidade, foi também uma vitória para o esporte do país.

"A gente conseguiu ter o Pelé a carreira quase inteira aqui no Brasil. Ele não precisou ir à Europa, não quis à Europa, quis ficar aqui e a gente conseguiu viabilizar isso. Então é uma grande vitória do futebol brasileiro. É uma história de vitória do futebol brasileiro em campo, mas a vitória brasileira que representa o Pelé é também para autoestima, para a ideia do atleta de elite, para o atleta negro brasileiro", afirma Iamin em entrevista à Sputnik Brasil.

© AP Photo / AP PhotoPelé, grande estrela do futebol brasileiro, durante partida de agosto de 1969, a meses de marcar seu gol número 1.000, a que chegou em 19 de novembro do mesmo ano, jogando para o Santos Futebol Clube, que ganhou por 2 a 1 contra o Vasco da Gama
Pelé, grande estrela do futebol brasileiro, durante partida de agosto de 1969, a meses de marcar seu gol número 1.000, a que chegou em 19 de novembro do mesmo ano, jogando para o Santos Futebol Clube, que ganhou por 2 a 1 contra o Vasco da Gama - Sputnik Brasil, 1920, 30.12.2022
Pelé, grande estrela do futebol brasileiro, durante partida de agosto de 1969, a meses de marcar seu gol número 1.000, a que chegou em 19 de novembro do mesmo ano, jogando para o Santos Futebol Clube, que ganhou por 2 a 1 contra o Vasco da Gama
O jornalista afirma que, apesar de que a notícia da morte de Pelé já era esperada devido ao seu quadro de saúde, está de coração partido ao recebê-la. Para Iamin, seria necessário inventar uma nova palavra para classificar a importância do tricampeão mundial.
"Muitas vezes a gente fala sobre alguém que é muito bom em alguma coisa que 'esse cara é o Pelé de determinada coisa', porque o Pelé não tem um adjetivo que possa defini-lo, então que o adjetivo vire Pelé", conclui Iamin.
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