China, Bolívia e a exploração de lítio: salto de qualidade da presença latino-americana no mundo?
© AFP 2023 / AIZAR RALDES
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Com tantos países interessados no lítio boliviano, o que explica a parceria com a China? De que forma o negócio poderá servir de exemplo na América do Sul? Em entrevista à Sputnik Brasil, especialista em relações internacionais explicou a disputa na região pelo mineral, estratégico para indústrias aeroespaciais e automobilísticas.
O consórcio chinês CBC, liderado pela empresa de tecnologia Contemporary Amperex Technology Limited (CATL), venceu a disputa pela exploração de depósitos de lítio na Bolívia, no fim de janeiro. O grupo superou ofertas de mais de 20 empresas.
De acordo com o Ministério de Hidrocarbonetos e Energias boliviano, a estatal Depósitos de Lítio Bolivianos (YLB, na sigla em espanhol) assinou acordos para explorar, refinar, processar e comercializar recursos de lítio em conjunto com o consórcio chinês.
Em uma primeira etapa, o grupo já investirá mais de US$ 1 bilhão (R$ 5,3 bilhões) para construção de estradas, instalação de base e infraestrutura e fornecimento de energia. Com isso, o governo boliviano prevê viabilizar a produção de baterias de lítio no país até 2025.
O lítio mineral é conhecido como o "ouro branco" do século XXI, pois é essencial nas indústrias aeroespaciais e automobilísticas atualmente. Segundo o Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS, na sigla em inglês), mais de 60% das reservas de lítio do mundo estão na Argentina, na Bolívia e no Chile. A Bolívia possui 23% dessa fatia.
Autor do artigo "A 'guerra do lítio mineral' e o Império na América Latina", no site Monitor do Oriente, o professor de relações internacionais Bruno Lima Rocha conversou com a Sputnik Brasil e apontou que o negócio firmado entre Bolívia e China "pode implicar em uma revolução técnico-científica no ouro branco do século XXI".
Segundo o especialista, a Bolívia vem, há quase duas décadas, projetando o desenvolvimento nacional por meio da exploração de minérios em seu território.
Ele lembra que, em dezembro de 2006, o ex-presidente boliviano Evo Morales recuperou a propriedade da riqueza de hidrocarbonetos do país por meio de decreto, em um processo de nacionalização que retirou de multinacionais instaladas na Bolívia a propriedade de poços de petróleo, jazidas de gás e refinarias.
O então presidente da Bolívia, Evo Morales, segura recipientes com carbonato de lítio e potássio produzidos na planta-piloto de lítio de Río Grande, durante visita a instalações no Salar de Uyuni, onde se encontram as maiores reservas de lítio do mundo. Bolívia, 29 de outubro de 2009. Foto de arquivo
© AP Photo / Juan Karita
O atual presidente, Luis Arce, comemorou a nova parceria com o consórcio, afirmando que o negócio inaugurou "a era da industrialização do lítio boliviano".
O mandatário também já se comprometeu a entregar nove centros de medicina nuclear, que tratarão pacientes com câncer, em "uma abertura de uma nova cadeia de valor", na avaliação do especialista em relações internacionais.
"Não por acaso estão lançando também um serviço único de saúde que pode ter uma hiperespecialidade", afirma Rocha. "Nesse exemplo da China, todos os indicadores publicizados pelo governo Arce são positivos na parceria."
Exemplo para outros países da região?
Rocha avalia que a parceria entre Bolívia e China fatalmente servirá de inspiração para os países vizinhos.
"Como no triângulo do lítio incidem ao menos 60% do lítio do mundo, nos vales andinos ou nos contrafortes andinos na Bolívia, no Chile, na Argentina, isso pode ser um incentivo a não apenas explorar lítio", diz o especialista.
Segundo ele, se outros países "copiarem o modelo" e tiverem uma associação vantajosa, com transferência tecnológica, podem ser bem-sucedidos. Ele destaca a importância do que seria a substituição "da sina latino-americana de exportação mineral por um beneficiamento complexo da commodity".
"Ou seja, não se vai apenas vender no mercado internacional, mas tentar criar o ciclo completo. Vende-se uma parte do lítio ao mercado internacional, por exemplo a China, mas se compromete com o beneficiamento e com a transferência e desenvolvimento tecnológico de uma outra parte", afirma.
Para ele, esse seria um modelo interessante, mas é necessário dinheiro em caixa para realizar o aporte. O especialista indica, por exemplo, que fontes do Banco do Sul e do banco do BRICS poderiam ajudar nesse processo.
"Se essas operações forem feitas fugindo do padrão dólar, aí seria perfeito. Realmente estaríamos falando de um salto de qualidade da presença latino-americana no mercado e no sistema internacional", indicou.
Brasil pode se beneficiar?
Aliado da China no BRICS e de volta à Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), da qual a Bolívia faz parte, o Brasil também possui reservas de lítio.
Segundo o professor de relações internacionais, o país pode vir a se beneficiar de investimentos chineses na região, mas ainda tem "contas a ajustar no cenário doméstico".
Em sua análise, há um "jogo de antecipações estratégicas" no cenário geopolítico que ele diz não ver no Brasil.
"No âmbito da economia e do desenvolvimento científico-tecnológico, o Brasil tem plenas condições. No âmbito da defesa estratégica, temos seríssimos problemas", alerta.
Ele recorda, por exemplo, que o Brasil perdeu sua soberania sobre a base de Alcântara, espaçoporto da Agência Espacial Brasileira (AEB) cedido aos Estados Unidos por contrato.
"A gente espera que o governo de coalizão liderado pela social-democracia não seja tão 'inocente' ou pouco previdente em relação às ameaças externas, caso vá desenvolver uma cadeia estratégica para o século XXI como [a do] [...] lítio mineral", apontou.
