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De milícia a salvação: brasileiro conta como Israel mudou visão de palestinos sobre o Hamas

© AP Photo / Hatem AliMenino palestino entre a destruição após ataques israelenses em Rafah. Faixa de Gaza, 15 de novembro de 2023
Menino palestino entre a destruição após ataques israelenses em Rafah. Faixa de Gaza, 15 de novembro de 2023 - Sputnik Brasil, 1920, 16.11.2023
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Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, brasileiro filho de palestinos explica a raiz do radicalismo do Hamas e narra como passou a usar o ensino de jiu-jítsu para mudar a realidade de crianças carentes na Palestina.
A ofensiva lançada por Israel na Faixa de Gaza colocou em evidência o grupo palestino Hamas. Única força de segurança palestina presente no enclave, o grupo divide opiniões: alguns o consideram um grupo terrorista; outros, um movimento de resistência.
O podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, conversou com Samy al Jamal, cientista político formado pela Universidade do Arizona, lutador e embaixador do jiu-jítsu na Jordânia, para entender qual a visão dos palestinos sobre o Hamas e como a ofensiva israelense impactou a imagem do grupo entre a população palestina.
Brasileiro filho de palestinos e residente na Jordânia, al Jamal relata a história do pai, que se mudou para a cidade de Gaza após Israel ocupar o território onde ele morava.

"Logo no começo [da criação do Estado] de Israel, dos israelenses (não vou falar judeu, porque judeu é uma religião), quando teve os conflitos ali, meu pai era patriota, palestino, e estava ali na resistência, uma resistência pacata, não era uma coisa de carregar armas. […] Pegaram o meu pai e prenderam numa prisão que é muito famosa porque ninguém saía de lá vivo, que era a prisão de Sabá", explica al Jamal.

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Ele acrescenta que a prisão ficava no deserto, enterrada sob a areia, com apenas uma pequena janela, de cerca de 10 centímetros. A prisão era superlotada e, para contornar o problema, de tempos em tempos, soldados israelenses soltavam alguns prisioneiros e davam ordens para que corressem. Em seguida, começavam a atirar em direção aos palestinos libertos. "Quem eles conseguissem matar, matavam. Basicamente era um tipo de execução."
Al Jamal conta que o pai passou três anos nessa prisão, sofrendo torturas físicas e psicológicas. "Eles ficaram três anos tentando pegar informação do meu pai, e meu pai realmente não tinha informação nenhuma para dar, porque ele não fazia parte da resistência armada palestina. Então eles sempre usavam técnicas de tortura muito bem elaboradas. Eles tentavam quebrar o prisioneiro de uma maneira psicológica, física e moral. Ele apanhava todo dia, inclusive meu pai é uma pessoa, hoje em dia, que não sente dor. Ele bloqueou isso."
Ele afirma que o pai era obrigado a subir em um pequeno armário colocado dentro da cela. Depois, cachorros entravam.

"Os cachorros ficavam latindo 24 horas, quase chegando a morder meu pai, mas não mordiam. E meu pai ficava naquela, sem poder dormir. Ele não dormia. Ele falava que no segundo, terceiro dia, achava que ia morrer", diz al Jamal acrescentando que, de tempos em tempos, o pai era enviado para a enfermaria, tratado e depois levado de volta para ser torturado novamente.

Al Jamal explica que o pai conseguiu fugir em uma das levas liberadas pelos soldados israelenses. "Eles soltavam na fronteira entre o Egito e a Palestina, mandavam eles correr e começavam a atirar. Nesse caso, [no dia da soltura do pai de al Jamal], foram 13 que saíram de uma caminhonetezinha. Dos 13, só três sobreviveram, e o meu pai foi um deles. O que acontecia é que eles atiravam em direção ao Egito. E, no Egito, [os soldados da fronteira] no escuro, vendo uma porção de gente correr na direção deles, e ouvindo tiros, também atiravam. Era praticamente impossível sair ileso de uma coisa dessa."
Ele explica que o pai conseguiu se esconder em um cacto e passou dias vagando no deserto de dia e se escondendo em cactos à noite até chegar em Gaza.
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Em 1959, ele arrumou um emprego como motorista na Organização das Nações Unidas (ONU) e conheceu um militar da Marinha do Brasil, que o auxiliou a vir para o país.

"Ele chegou no Brasil sem dinheiro, sem documentação, sem nenhum tipo de infraestrutura, não conhecia ninguém. Naquela época não tinha televisão em Gaza, mal tinha rádio. Ninguém de Gaza nunca saiu porque já era um lugar difícil de sair porque você não tinha documento. […] Ele acabou sendo morador de rua por mais de um mês."

Al Jamal conta que o pai procurou novamente o militar da Marinha, que conseguiu arranjar para ele um emprego de motorista de ônibus. "A gente sempre fala. Ele dá graças a Deus a tudo o que aconteceu com ele no Brasil. O Brasil foi a salvação dele."

O retorno para Gaza

Al Jamal explica que, após casar e ter filhos, seu pai fez questão de levar a família para Gaza. "Todo palestino no mundo nunca deixa o filho esquecer a origem, a causa e a história", explica al Jamal.
Ele diz que a primeira vez que foi a Gaza foi em 1975, quando o enclave ainda era ocupado por Israel. "A trajetória para chegar lá com três filhos, a minha mãe, era uma coisa muito longa. E quando a gente chegava no aeroporto, eles checavam cada peça da mala, cada sapato, cada bijuteria. A gente fazia uma viagem de mais ou menos 24 horas, chegava lá, ficava mais seis horas no aeroporto. […] Depois, tinha que pegar um carro, atravessar de Israel para Gaza, aí tem que passar por uns três ou quatro pontos de checagem de segurança."
Ele afirma que, na época, Gaza era "uma cidade muito simples, basicamente como uma cidadezinha de interior no Nordeste".

"Tinha a área rica, que são as famílias antigas, com dinheiro antigo, mas a maior parte de Gaza era um povão e uma coisa muito simples. […] É uma cidade muito bonita, tem uma natureza muito bonita, tem uma praia muito bonita, mas era bem simples. A gente chegava, ia numa sorveteria, eles não tinham aquela colher que você faz a bola de sorvete. Aí uma vez eu trouxe, e era como eu tivesse trazido um computador na época. Mas era pacífica. […] Não tinha televisão. A televisão que tinha era o mesmo programa o tempo todo, em preto e branco. Não valia a pena."

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Al Jamal afirma que deixou de retornar a Gaza em 1987, quando a situação ficou mais complicada, com mais dificuldade de entrar na região.

Como a população palestina enxerga o Hamas

Questionado sobre qual a visão dos palestinos sobre o Hamas, al Jamal diz que é totalmente contra qualquer tipo de violência, mas pondera que "qualquer pessoa que pergunte sobre o Hamas tem que entender, primeiro, os 75 anos de ocupação, de controle israelense" sobre a Palestina.

"O Hamas é um bioproduto de toda a opressão que foi feita há anos. Se parar para analisar, acho que é basicamente a terceira geração que nasce numa prisão. Gaza é a maior prisão ao ar livre do mundo. Um fato interessante é que 85% dos militantes do Hamas são órfãos de pai ou mãe que foram mortos pelo Exército de Israel."

Ele acrescenta que os atuais integrantes do Hamas "são pessoas que viram na frente delas, como essas crianças estão vendo, bombas caindo em cima deles, e eles ficando órfãos."
Na opinião de al Jamal, "o Hamas, quando entrou para pegar os reféns [israelenses], na verdade, queria tirar da prisão os 5 mil palestinos que estão nas prisões de Israel sem direitos nenhum, sem serem julgados e sem tempo limitado para sair". Ele afirma que considera o Hamas "um fruto da opressão que é feita por Israel".
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"Não concordo com uma milícia atacando um povo, como também não concordo com a opressão que é feita por Israel. A forma que foi feita a divisão de duas partes [da Palestina], uma que é a Cisjordânia e a outra que é [a Faixa de] Gaza, foi puramente para criar dois governos opostos."
Na opinião de al Jamal, antes dos ataques do dia 7 de outubro, "a maioria da população dentro de Gaza era contra o Hamas", porém, isso mudou após a ofensiva israelense.

"Agora, a única opção e a única visão que as pessoas têm é que o Hamas é a única entidade no mundo que está defendendo o povo de Gaza. Então o Hamas passou de um governo de milícia que não era bem aceito, e agora está sendo a salvação de Gaza. E isso não deveria acontecer. O que deveria acontecer é você dar liberdade para o povo de Gaza, liberdade para as pessoas viverem uma vida normal e poderem progredir, ver um objetivo no futuro para que não exista extremismo."

Levando o jiu-jítsu para a Palestina

Al Jamal afirma que, após se mudar para a Jordânia, decidiu abrir uma academia de jiu-jítsu, já que não havia uma no país. Ele introduziu a luta no país e recebeu muitas condecorações pelo trabalho.

"Hoje em dia, a gente tem uma das maiores equipes de jiu-jítsu do Oriente Médio. Em paralelo a isso, [...] eu financiei e patrocinei essas pessoas [alunos] para abrirem academias em comunidades carentes [em suas respectivas cidades] e introduzir o jiu-jítsu lá. Hoje em dia, nós temos nove academias em comunidades carentes. Temos academias em campos de refugiados palestinos aqui na Jordânia e temos uma academia em Ramallah [na Palestina]."

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Ele afirma que usa o jiu-jítsu como uma "ferramenta de educação, para dar uma chance para essas crianças crescerem".
"Porque se você nasce aqui [na Jordânia] como palestino, não vira jordaniano automaticamente. Você não é jordaniano, você tem um documento autorizando a morar aqui, mas no dia que sair daqui não pode voltar mais. Então você é um refugiado praticamente naquela documentação. Tudo é mais difícil para eles, é mais difícil conseguir emprego, entrar na faculdade. Porque eles estudam em escolas públicas, então é difícil conseguir bolsa em faculdades estaduais. A gente está usando esse trabalho como uma ferramenta para virarem professores e poderem viver de dar aula de jiu-jítsu. Tem funcionado muito bem esse trabalho, sendo reconhecido pelo governo brasileiro."
Atualmente, al Jamal é lutador e professor de jiu-jítsu, embaixador do estilo de luta na Jordânia e atuante em projetos sociais, ensinando o esporte a crianças na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Da Embaixada do Brasil na Jordânia, ele recebeu a condecoração de cavaleiro da ordem de Rio Branco, uma condecoração rara, dada a atletas como Pelé e Cafu, e diz ser muito grato pelo trabalho que desenvolve.

"A gente vai conseguir fazer agora uma grande academia numa cidade carente aqui. Para ter uma ideia, a cidade não tem um esporte, não tem uma criança jogando bola, não tem uma academia, não tem nada. E a gente vai montar a primeira academia de jiu-jítsu 100% de graça, totalmente patrocinada por nós. A gente está querendo tirar, só naquela cidade, entre 200 e 300 crianças das ruas."

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