'Clube dos ricos': Brasil deveria se importar com relatórios da OCDE?
14:00 25.12.2023 (atualizado: 15:01 25.12.2023)
© Fabio Rodrigues-Pozzebom / Agência BrasilO presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ministro da Fazenda Fernando Haddad na sessão de Sherpas do G20, no Palácio do Itamaraty, Brasília, em 13 de dezembro de 2023.
© Fabio Rodrigues-Pozzebom / Agência Brasil
Nos siga no
Especiais
Recentemente, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE) divulgou o relatório Economic Survey Brazil 2023, em que destaca pontos positivos e negativos da política econômica e monetária brasileira.
Diplomaticamente recebido pelo Ministério da Fazenda, o documento foi criticado por Lula, que convidou a OCDE a visitar o Brasil em 2024 e ver como o país superará as suas expectativas.
Para a grande mídia, no entanto, o parecer da OCDE representa erros no direcionamento da economia brasileira sob o comando do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. De acordo com especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil, isso não é nenhuma surpresa.
"A mídia ocidental, em sua maioria controlada por grandes grupos financeiros, é hegemonicamente neoliberal e apresenta uma reflexão alinhada aos interesses do Norte Global", afirmou João Victor Motta, doutorando do programa de pós-graduação em relações internacionais San Tiago Dantas.
O que é a OCDE?
Criada em em 1948, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico é um fórum de países que seguem um alinhamento relacionado a preceitos econômicos comuns.
Também conhecida como "clube dos ricos", para Ana Prestes, socióloga, analista internacional e doutora em ciência política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a OCDE.
"É herdeira de um arcabouço econômico, lá de Bretton Woods, depois do pós-guerra, que criou uma estrutura econômica mundial em torno do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, com empréstimos muito draconianos."
Motta, contudo, ressalta a hipocrisia do fórum, que em seus relatórios "apresenta soluções e propostas que são a antítese do modo que possibilitou o desenvolvimento de seus países-membros".
Pedro Faria, economista, concorda com a opinião do especialista, afirmando ainda que "a OCDE representa uma ideologia dominante nesses países, que nem sempre eles mesmos implementam."
"Por exemplo, os Estados Unidos hoje estão tocando déficits públicos enormes, fazendo política industrial extremamente ativa, impondo restrições ao livre comércio, e a OCDE está recomendando para a gente o oposto."
Do outro lado, aponta o economista, temos o caso da Alemanha, que "está se autoinfligindo cortes de gastos gigantescos que estão criando uma recessão desnecessária no país", se referindo ao limite de custos do governo, que se vê impossibilitado de manter os preços de energia sob controle.
Nesse contexto, Faria descreve a OCDE como uma formadora de consenso ideológico pelo qual as decisões econômicas, financeiras e monetárias são avaliadas.
"A OCDE tenta criar esse ambiente ideológico e tenta influenciar as decisões de investimento para que os fluxos de capital disciplinem a atuação dos governos de forma atuem de acordo com o que eles querem. Os fluxos de capital têm seus próprios interesses, então eles disciplinam governos e têm um efeito relevante."
Por que o Brasil ainda não faz parte da OCDE?
Sob o governo de Michel Temer, o Brasil formalizou seu pedido de adesão à OCDE, mas, foi durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro que o país deu gás às reformas exigidas pela organização.
Hoje, sob mandato do presidente Lula, o Brasil deu uma freada no processo. Ainda assim, de acordo com o Ministério da Economia, chefiado por Fernando Haddad, a entrada no fórum econômico não foi rescindida.
Para Motta, entretanto, a entrada brasileira na organização não traria nenhum benefício direto ao país, uma vez que sua agenda econômica "não é adequada para os países do Sul Global", que, conforme explica Faria, "têm uma realidade econômica completamente distinta, outro parque produtivo e outra situação de posicionamento na divisão global do trabalho".
Segundo Prestes, o documento vem como uma forma da OCDE tentar manter uma interlocução aberta frente a um governo que "prioriza muito mais outras frentes de atuação na política externa".
"Ou de tentar mostrar que uma avaliação ruim da OCDE pode ter impacto econômico para o Brasil", avaliou.
Em vista disso, aponta Motta, a divulgação do recente relatório da OCDE serve como uma forma de "imposição de agenda e dos 'toolkits' de políticas públicas".
"O tom do documento é uma represália ao desinteresse brasileiro, mas também ao desalinhamento com a agenda político e econômica da OCDE", ressaltou Motta.
Já, de acordo com Faria, o documento, cuja equipe econômica brasileira o recebeu de maneira "diplomática", é uma "peça ideológica que propõe uma série de recomendações de política pública, com o objetivo de influenciar tanto o debate nacional, criar um consenso e condicionar os influxos de capital à essa ideologia".
OCDE, Sul Global e as alternativas
A OCDE, explica Motta, "assume um papel neocolonial com os países do Sul". Dentro dessa perspectiva, os analistas convidados expressaram a necessidade de se pensar em instrumentos e fóruns alternativos, que atendam a necessidades específicas de países emergentes.
Para Motta e Prestes, essa organização é o BRICS, que possui seu próprio banco internacional, o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD).
O grupo, conhecido como BRICS+ a partir de janeiro de 2024, quando sua composição será estendida para 11 nações, possui uma agenda "bem diferente" daqueles países que integram o núcleo da OCDE, afirmou Ana Prestes.
"É uma agenda de desdolarização, é uma agenda de investimento em infraestrutura, é uma agenda de investimento também em políticas sociais."
Motta destaca ainda que o grupo apresenta menos soluções cartilhas ideológicas prontas, sendo um grupo mais aberto e com "mais espaço de diálogo e reflexão".
Essa contraposição entre a OCDE e o BRICS, para o especialista em relações internacionais, retorna a histórica oposição entre Norte e Sul, "desde o movimento dos países não alinhados e o terceiro-mundismo, passando pelo G77 e mais recentemente com a retomada do papel do BRICS."
Na opinião de Faria, no entanto, uma alternativa a OCDE deve ser capaz de "produzir relatórios baseados em outras perspectivas". "Seria bom para justamente criar um ambiente ideológico internacional de combate a ideologia que a OCDE, o FMI, o Banco Mundial produzem."
Nesse sentido, o BRICS ainda se apresenta como insuficiente para se contrapor ideologicamente no cenário global à OCDE. "Estamos vendo o fortalecimento de instituições como o Novo Banco de Desenvolvimento, que é conhecido como o Banco dos BRICS, que produz seus relatórios", disse.
"Mas a gente ainda não consegue produzir um ambiente ideológico de geração de conhecimento que seja capaz de se contrapor a esse que é criado pelas instituições de Bretton Woods e pela OCDE."
O economista destaca ainda a existência de instituições brasileiras que produzem pesquisas, notas e relatórios "baseadas em visões alternativas", como o Centro Celso Furtado, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e o Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (Made) da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da Universidade de São Paulo (USP).