Sob a sombra dos EUA, Irã terá dificuldades para retomar negociações com Ocidente, dizem analistas
10:22 11.07.2024 (atualizado: 11:37 11.07.2024)
© AFP 2023 / Atta Kenare Homem segura cartaz do recém-eleito presidente do Irã, Masoud Pezeshkian, em Teerã, em 6 de julho de 2024.
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Novo presidente do Irã, Masoud Pezeshkian foi eleito sob a promessa de retomar diálogo e acordo nuclear com Ocidente. Com fortes laços econômicos com a China e relações crescentes com a Rússia, Teerã tem poucos incentivos para deixar seus parceiros eurasiáticos em prol de Washington, acredita analista ouvido pela Sputnik Brasil.
Nesta quinta-feira (11), o parlamento do Irã confirmou a inauguração do mandato do presidente eleito do país, Masoud Pezeshkian, para o dia 30 de julho. O anúncio foi feito pelo porta-voz do conselho legislativo, após a confirmação dos resultados eleitorais neste fim de semana.
Eleito sob a promessa de liberalização na área de costumes, aproximação da juventude e renovadas negociações com o Ocidente, Pezeshkian terá que lidar com obstáculos estruturais para executar as reformas que defende.
© AFP 2023 / Atta KenareEleitor agita bandeira iraniana e usa lenço com o nome do recém-eleito presidente do Irã, Masoud Pezeshkian, em Teerã, em 6 de julho de 2024.
Eleitor agita bandeira iraniana e usa lenço com o nome do recém-eleito presidente do Irã, Masoud Pezeshkian, em Teerã, em 6 de julho de 2024.
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A persistência do conflito em Gaza, as eleições presidenciais nos EUA, as dificuldades econômicas iranianas e a influência de forças conservadoras representadas pelo aiatolá Khamenei devem forçar Pezeshkian a negociar e adequar as suas pautas a um contexto pouco favorável.
"As eleições acabaram, e esse é só o começo da nossa parceria. O difícil caminho à frente será trilhado com o nosso companheirismo, empatia e confiança", escreveu Pezeshkian em suas redes sociais.
O novo presidente iraniano é médico de formação e já concorreu ao cargo três vezes. Apesar de ser considerado um progressista, Pezeshkian tem trânsito na elite política e religiosa e teve sua candidatura presidencial aprovada pelo Conselho de Notáveis.
"Pezeshkian materializa uma série de insatisfações por parte da população iraniana. Desde a saída unilateral dos EUA sob Trump do acordo nuclear, as sanções econômicas voltam a pressionar o Irã economicamente. A inflação é alta, na casa dos 40%", disse o professor adjunto de Segurança Internacional na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Fernando Brancoli, à Sputnik Brasil.
O cientista político e professor de Relações Internacionais, Bruno Lima Rocha, ainda nota o interesse de Pezeshkian em incluir minorias étnicas e acenar para a numerosa diáspora iraniana.
"A sua mensagem de promover um Irã mais pluriétnico é reforçada pela sua origem azeri", disse Rocha à Sputnik Brasil. "Ele terá uma mão mais leve quanto à classe empresarial iraniana, inclusive quanto à diáspora, que é numerosa, qualificada, capitalizada e ocidentalizada."
Para Rocha, "se Pezeshkian conseguir unir esses elementos, ele poderá atrair a juventude para a República, flexibilizando o código de costumes, e integrar mais as etnias regionais. Caso sua intenção de abrir canais de diálogo com o Ocidente se materialize, o presidente iraniano poderá ter sucesso na diversificação política do país."
No meio do caminho havia os EUA
Durante a campanha eleitoral, Pezeshkian declarou interesse em retomar as negociações do acordo nuclear iraniano com as principais potências ocidentais.
"Não será fácil para Pezeshkian retomar as negociações sobre o acordo nuclear. Os EUA estão em plena campanha presidencial, e Donald Trump tem reais chances de ganhar", notou Brancoli. "Nesse contexto, o Irã poderá tentar estabelecer relações mais próximas com países da Europa, mas a ausência dos EUA gera sérias limitações."
Nesta quarta-feira (10), a agência de notícias local Tasnim informou que o ex-negociador-chefe para assuntos nucleares do Irã, Abbas Araqchi, deverá ser nomeado como novo ministro das Relações Exteriores. Fontes ouvidas pela agência confirmaram que Araqchi teria acordado com Pezeshkian a agenda de contatos com líderes regionais e grupos da resistência.
© AP Photo / Vahid SalemiMulher preenche cédula durante a eleição presidencial iraniana em uma seção eleitoral no santuário de Saint Saleh, no norte de Teerã. Irã, 28 de junho de 2024
Mulher preenche cédula durante a eleição presidencial iraniana em uma seção eleitoral no santuário de Saint Saleh, no norte de Teerã. Irã, 28 de junho de 2024
© AP Photo / Vahid Salemi
Apesar das sinalizações positivas sobre o acordo nuclear iraniano feitas no passado por Alemanha, França e Reino Unido, atualmente esses países estariam sujeitos a sanções norte-americanas caso cooperassem com Teerã.
"O governo alemão já disse mais de uma vez que estaria disposto a fazer esse tipo de discussão", acredita Brancoli. "O problema maior são os EUA e seu argumento de que qualquer empresa ou país estabelecendo relações com o Irã em campos ligados a energia nuclear estará sujeito a sanções."
A situação geopolítica regional tampouco trabalha em favor de Pezeshkian. Aliados iranianos estão engajados em teatros de guerra ativos na Faixa de Gaza, no sul do Líbano e no mar Vermelho, opondo-se não só a Israel, mas também à própria Marinha dos EUA.
"A situação regional segue muito tensa, já que Israel consegue operar sem grandes constrangimentos do ponto de vista prático, não há uma estrutura internacional que impeça isso. Tanto Biden, quanto Trump são explícitos quanto à manutenção da relação especial entre EUA e Israel. E isso diminui o espaço para eventual diálogo com o Irã", acredita Brancoli.
Para o cientista político Bruno Rocha, o Irã dificilmente modificaria sua política de apoio ao chamado Eixo da Resistência, considerado parte importante da sua estratégia de dissuasão contra avanços dos EUA ou de Israel sobre a sua soberania territorial.
© AFP 2023 / Atta Kenare Apoiadores recebem o recém-eleito presidente iraniano, Masoud Pezeshkian, em Teerã, em 6 de julho de 2024.
Apoiadores recebem o recém-eleito presidente iraniano, Masoud Pezeshkian, em Teerã, em 6 de julho de 2024.
© AFP 2023 / Atta Kenare
"A agenda do Eixo da Resistência deverá ser mantida. O presidente eleito é veterano do Corpo de Guardiões da Revolução Islâmica e serviu na Guerra Irã-Iraque", disse Rocha. "Mesmo que quisesse, seria muito difícil Pezeshkian conduzir uma política externa que não tenha o aval do Corpo de Guardiões."
Em uma carta enviada por Pezeshkian ao líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, na segunda-feira (8), o presidente eleito prometeu apoiar o Eixo da Resistência "com vigor". Nesta quarta-feira (10), o iraniano enviou mensagem ao líder do Hamas, Ismail Haniyeh, confirmando que Teerã manterá "seu apoio abrangente ao povo oprimido da Palestina", reportou a agência de notícias iraniana IRNA.
Papel do Irã no BRICS
O foco de Pezeshkian nas relações com o Ocidente durante a campanha presidencial levou alguns analistas a apostar em um distanciamento de Teerã de grupos como a Organização para Cooperação de Xangai ou mesmo do BRICS. Analistas ouvidos pela Sputnik Brasil não concordam, e afirmam que o fortalecimento dos laços entre Irã e países como Rússia e China veio para ficar.
"Há quem tenha interpretado as declarações de Pezeshkian como um balde de água fria na estratégia do BRICS e de aproximação do Irã da China, mas eu vejo como uma escolha pragmática do Irã de diversificar sua economia, de política externa ativa e independente e realismo comercial", acredita Rocha. "O Irã também caminha para uma integração cada vez maior com a Rússia, inclusive trabalhando pela complementariedade dos sistemas de armamentos, o que é um assunto delicado."
A política externa iraniana encontra-se atualmente alicerçada na relação com países vizinhos, no fortalecimento de contatos entre países islâmicos e na integração econômica eurasiática, explicou Rocha. Segundo ele, "não há nenhuma sinalização de mudança da política iraniana em relação ao BRICS".
© Sputnik / Grigory SysoevDa esquerda para a direita, responsáveis de Relações Exteriores de vários países: Dammu Ravi da Índia, Sameh Shoukry do Egito, Naledi Pandor da África do Sul, Wang Yi da China, Sergey Lavrov da Rússia, Mauro Vieira do Brasil, Abdullah bin Zayed Al Nahyan dos Emirados Árabes Unidos, Taye Atskeselassie da Etiópia, e Ali Bagheri, durante foto conjunta para a reunião de ministros das Relações Exteriores do BRICS em Nizhny Novgorod, Rússia, foto publicada em 10 de junho de 2024
Da esquerda para a direita, responsáveis de Relações Exteriores de vários países: Dammu Ravi da Índia, Sameh Shoukry do Egito, Naledi Pandor da África do Sul, Wang Yi da China, Sergey Lavrov da Rússia, Mauro Vieira do Brasil, Abdullah bin Zayed Al Nahyan dos Emirados Árabes Unidos, Taye Atskeselassie da Etiópia, e Ali Bagheri, durante foto conjunta para a reunião de ministros das Relações Exteriores do BRICS em Nizhny Novgorod, Rússia, foto publicada em 10 de junho de 2024
© Sputnik / Grigory Sysoev
"As mensagens de China, Brasil e Rússia em relação à nova liderança iraniana foram positivas", notou o professor da UFRJ Brancoli. "A China é o principal parceiro econômico do Irã. O Irã tem excelentes relações com a Rússia. É difícil imaginar que essa tentativa de proximidade com o Ocidente representaria um afastamento dos parceiros tradicionais do Sul Global, inclusive o Brasil. Uma coisa não exclui a outra."
Para o Brasil, a disposição iraniana de liberalizar suas normas relacionadas a costumes no âmbito do BRICS podem ser bem-vindas. Uma postura mais progressista por parte do Irã "pode facilitar o diálogo com o Brasil, que hoje é governado por um partido de centro-esquerda que valoriza esse tipo de discussão".
© AP Photo / Gabinete do Líder Supremo do IrãAli Khamenei fala a professores na mesquita Imam Khomeini Hussainiyah, em Teerã. Irã, 1º de maio de 2024
Ali Khamenei fala a professores na mesquita Imam Khomeini Hussainiyah, em Teerã. Irã, 1º de maio de 2024
© AP Photo / Gabinete do Líder Supremo do Irã
"Qualquer notícia de abertura de um país é uma boa notícia para o Brasil, que não tem a intenção de ficar isolado após a entrada de países mais conservadores no BRICS", considerou Brancoli. "Mas os [países do] BRICS, de modo geral, são muito cuidadosos com as declarações, justamente por acreditarem que cada país é soberano para decidir o seu futuro e suas normas."
As mudanças propostas por Pezeshkian, sejam na agenda de costumes ou na política externa, ainda terão que passar pelo aval do aiatolá Khamenei, que mantém a competência para tratar de assuntos de defesa e política nuclear.
"Devemos lembrar que o regime político iraniano se assemelha a um presidencialismo híbrido, no qual o presidente precisa levar em conta o poder do aiatolá. Portanto essas promessas de campanha terão que ser negociadas e articuladas com o aiatolá, e por isso não há garantia de que serão implementadas", concluiu o especialista.
Neste sábado (6), o Ministério do Interior do Irã divulgou os resultados das eleições presidenciais do país, apontando vitória de Pezeshkian com 53% dos votos, contra 44% de seu opositor conservador Saeed Jalili. As eleições foram realizadas de forma antecipada, em contexto extraordinário, dada a morte inesperada do presidente iraniano Ebrahim Raisi em um acidente aéreo, no mês de maio.