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Intervenção de Trump na América do Sul pode ocorrer sem soldados, avaliam especialistas

© AP Photo / Ron SachsDonald Trump faz uma saudação no palco do Emancipation Hall, durante a posse presidencial, em Washington, D.C. EUA, 20 de janeiro de 2025
Donald Trump faz uma saudação no palco do Emancipation Hall, durante a posse presidencial, em Washington, D.C. EUA, 20 de janeiro de 2025 - Sputnik Brasil, 1920, 21.01.2025
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Em entrevista à Sputnik Brasil, analistas apontam que há interesse do novo presidente estadunidense em intervir na região para conter a influência de China e Rússia, mas essa intervenção pode não ser militar.
Em discurso após tomar posse como o novo presidente dos EUA na segunda-feira (20), Donald Trump tornou a defender que Washington deve tomar de volta o controle do canal do Panamá.
Considerada uma das passagens críticas para o comércio global, o canal foi inaugurado em 1914 e administrado pelos EUA até 1999, quando teve o controle repassado ao governo panamenho. Nas últimas semanas, Trump vem elevando o tom, não descartando uma ocupação militar do canal, sob a justificativa de que a China estaria controlando a passagem.
O argumento é apontado como falso por analistas, mas traz à tona a preocupação sobre o uso da ocupação do canal para um eventual aumento da presença militar dos EUA na América do Sul.
A região experimentou, nas últimas décadas, um aumento significativo da influência da China enquanto os EUA perderam espaço, sobretudo na Colômbia e no Brasil, com a eleição de Gustavo Petro e Luiz Inácio Lula da Silva, respectivamente. Ademais, no final do ano passado, o Peru autorizou os EUA a enviarem soldados sob o argumento de ajudar na segurança do país.
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam se há, de fato, interesse dos EUA em aumentar a presença militar na América do Sul e como isso poderia impactar a região.
Para José Augusto Zague, pesquisador do Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas e do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Gedes), da Universidade Estadual Paulista (Unesp), a ameaça de Trump em relação ao Panamá segue a linha das demais sobre tornar o Canadá um estado dos EUA ou ocupar a Groelândia: um discurso talhado para se manter em evidência, sobretudo diante do próprio eleitorado e de outros líderes mundiais da direita radical.

"Não vejo como ele poderia fazer isso sem ter uma forte oposição e, nesse caso, o presidente atual do Panamá é um aliado dele, apoiou a eleição dele, é um presidente de direita. Então acho isso muito improvável. Parte de um discurso, um discurso muito alinhado com outras lideranças políticas, também com as big techs. Nós estamos vendo isso agora."

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Ele afirma que o envio de soldados ao Peru precisa ser avaliado com atenção, pois não se sabe se Trump vai retomar a abordagem dos EUA, implementada entre os anos 1990 e 2000, quando acabou sendo empreendido no continente latino-americano um modelo de segurança multidimensional em que as Forças Armadas são empregadas em tarefas de segurança pública, principalmente no combate ao narcotráfico.
Segundo ele, foi essa a estratégia colocada na Colômbia, que teve seu auge durante o governo de Álvaro Uribe (2002–2010) e agora está em queda na gestão de Petro.

"É necessário analisar se o que parece ser uma nova política dos EUA — no caso, com esse envio de soldados para o Peru — vai ter continuidade, se isso é algo que vai permanecer no novo governo ou se pode ser uma iniciativa isolada do governo Biden e o atual governo pode ter outros interesses", analisa.

Por sua vez, Héctor Saint-Pierre, especialista em segurança internacional da Unesp, enfatiza que o discurso de posse de Trump foi bem republicano, de voltar os EUA para si, e demonstrando desconhecimento em relação à realidade sul-americana.
Por outro lado, ele frisa que o discurso passou a impressão de ser "o canto do cisne". Em outras palavras, "o último canto antes da morte de uma grande potência em clara decadência", que está sendo contestada e deixando todas as organizações internacionais como forma de demonstrar desinteresse em relação ao mundo e concentrar-se em si mesma.
"Ele tinha pouco interesse pela América do Sul e demonstrava certo desconhecimento da realidade latino-americana, sem fazer distinções que são óbvias, tratando tudo mais ou menos da mesma maneira e demonstrando certo desdém e falta de importância […]. Só que toda essa narrativa leva países realmente preocupados com a própria existência a buscarem outras alternativas, como de fato estão fazendo. Ou seja, a entrada da China na América Latina está bastante consolidada e é justamente pela pouca importância que os Estados Unidos estão dando para a região. A China está levando na conta vários países que serão difíceis para os EUA reverterem [a influência de Pequim]."
Segundo Saint-Pierre, a Colômbia foi usada como espécie de base norte-americana na América do Sul até quando foi necessário, mas acabou sendo substituída.
Isso porque o avanço da tecnologia permitiu outro tipo de abordagem para vigiar a região. Além disso, os EUA atualmente têm bases em outros países do continente, como Equador, Argentina e Brasil, onde forças americanas "fazem exercícios militares constantes na fronteira norte, com objetivos difusos".
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Saint-Pierre também é cético quanto ao apoio de militares estadunidenses, um rompante expansionista de Trump, e lembra que no final do mandato anterior do atual líder (2017–2021), o republicano não obteve apoio da ala militar quando pediu a rescisão da Constituição do país para anular as eleições de 2020, nas quais foi derrotado por Joe Biden.
Segundo ele, atualmente Trump trava nos bastidores uma guerra com o chamado "deep state", o estado profundo — composto por toda a estrutura burocrática e administrativa do governo e pelas Forças Armadas, que são parte crucial das decisões tomadas —, que vem sendo substituído pelas big techs. A guerra de Trump com o estado profundo, como consequência, é também um embate com as Forças Armadas dos EUA.

"Dá a impressão do surgimento de um novo poder, da transformação de uma economia do lucro para uma economia digital, uma economia rentista para uma economia de dados, que se transforma em poder acima dos próprios Estados e nações. Todo esse grupo de big techs que está se aproximando de Trump são as grandes empresas tecnológicas a vigiar, que se aproximam do poder, e esse poder pode ser exercido. Ou seja, não é necessário utilizar grandes exércitos. São dados que alteram e modificam, perturbam as percepções das sociedades com resultados bastante importantes."

As ameaças de Trump de ocupar o canal do Panamá refletem a disputa comercial de influência com a China na América Latina e do Sul, conforme aponta Jahde Lopez, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGRI/UFSC) e pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Política Internacional Contemporânea (Geppic) na linha de pesquisa "O poder das ideias e a formação de institutos liberais na América Latina".
"O canal do Panamá é uma rota estratégica de comércio e transporte internacional, e qualquer movimento militar feito pelos EUA dentro dessa região fortaleceria a posição dos EUA, além de permitir uma projeção de poder em um ponto que é economicamente crucial. Dessa forma, a ameaça pode ter como objetivo não apenas conter a influência crescente da China, mas também reafirmar a presença militar, a influência e os interesses dos EUA no continente, especialmente uma área que conecta o Atlântico e o Pacífico e que tem um interesse econômico e geostratégico muito grande", afirma.
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Nesse contexto, ela afirma que "o problema não é o canal ser administrado por outro país, mas não ser administrado pelos EUA", e destaca que a autorização dada pelo Peru para a entrada de soldados norte-americanos pode ter um impacto significativo na ampliação dessa presença militar dos EUA na América Latina.

"Esse movimento pode ser visto como uma ampliação e uma demonstração da força militar dos EUA na região, especialmente em um contexto de crescente preocupação com instabilidade política em alguns países. […] Além disso, essa autorização pode abrir precedentes para uma interferência em outros países da região, assim como pode ser utilizado para ampliar a influência nas Forças Armadas nacionais aqui na região."

Ela ressalta que a ascensão de Petro, priorizando a autonomia, uma agenda progressista e buscando diversificar as parcerias, é reflexo de um movimento mais amplo na América Latina, que a longo prazo pode alterar as dinâmicas políticas e econômicas do continente.
"Esse realinhamento abre espaço para que outras potências, como a China e a Rússia, venham a expandir sua influência na região de uma maneira não só econômica e comercial, mas por meios políticos também. […] Os EUA não estarão dispostos a abrir mão de uma parte tão importante da sua hegemonia, principalmente quando essa mudança de postura da Colômbia pode inspirar outros países sul-americanos a adotarem uma postura mais independente em relação aos EUA", afirma.
Lopez afirma enxergar uma clara tentativa dos EUA de não apenas manter, mas ampliar a presença na América Latina, uma vez que historicamente Washington se vê como potência central no continente estadunidense, com o dever de proteger os outros países, que, na realidade, significa proteger os interesses norte-americanos e conter a entrada e as potências rivais.

"Embora essa presença não seja necessariamente sempre explícita, direta, militar, mas também feita de forma indireta, seja por meio diplomático, econômico, estratégico e principalmente por meio da disseminação de um ideário neoliberal apoiado por determinados grupos dentro da região. […]. A gente consegue ver que, nos últimos anos, os EUA têm se preocupado muito com o crescente envolvimento da China na América Latina em termos de investimento, em termos de parcerias comerciais e em termos tecnológicos — que acredito ser o principal tópico deste momento."

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