Sem Francisco, América Latina pode passar por 'disputa' entre religiões dominantes?
16:28 07.05.2025 (atualizado: 17:26 07.05.2025)
© AP Photo / Alessandra TarantinoPapa Francisco durante passagem pela Cidade do Panamá, em 2019

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Jorge Bergoglio, o papa Francisco, deixa um legado inestimável no que diz respeito a tolerância, renovação e diálogo. Primeiro latino-americano a assumir o mais alto posto da Igreja Católica, ele deixa também uma questão em aberto: a América Latina pode ter uma "disputa" entre religiões dominantes na região?
Pouco mais de duas semanas após a morte do papa Francisco, no último dia 21, aos 88 anos, começa nesta quarta-feira (7) o conclave, que escolherá o novo líder da Igreja Católica. Ao todo, 133 cardeais vão participar do processo.
Francisco, nos mais de 12 anos de seu papado, legou o diálogo e a benevolência — disse, em entrevista inédita à Sputnik, que a perseguição à Igreja Ortodoxa ucraniana deveria parar e que "a Rússia e a Ucrânia são povos irmãos".
O papa também demonstrava publicamente compaixão pela situação na Palestina. Após seu falecimento, foi divulgado que ele ligou 563 vezes para a Igreja da Sagrada Família na Cidade de Gaza. Todas as noites, por volta das 19h00, o religioso ligava para saber como estavam as cerca de 600 pessoas abrigadas dentro da única paróquia católica do enclave.
Em seu papado, o cardeal Bergoglio adotou a sinodalidade — conceito que representa uma Igreja mais participativa e missionária do que atenta somente aos corredores do Vaticano. Além disso, ele demonstrou acolhimento aos casais divorciados e aos homossexuais, dizendo que a Igreja estava aberta a todos.
Reduto do catolicismo, a América Latina é casa de 40% dos fiéis em todo o mundo. No Brasil, segundo pesquisa do instituto Datafolha, com dados de dezembro de 2024, cerca de metade da população se declara católica. Em proporção mundial, 13% dos mais de 1,3 bilhão de seguidores da religião em todo o mundo estão em solo brasileiro.
© l'Osservatore RomanoPapa Francisco demonstra religiosidade e lava os pés de homem em centro de refugiados em Roma

Papa Francisco demonstra religiosidade e lava os pés de homem em centro de refugiados em Roma
© l'Osservatore Romano
Se na América Latina, onde há maior concentração de católicos no mundo, "talvez ninguém tenha passado a ser católico por conta de Francisco, ninguém deixou de ser católico por conta dele", comenta Rodrigo Toniol, professor de antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Por outro lado, o número de fiéis do catolicismo tem crescido na África e na Ásia.
É inerente que a religião ocupa um lugar absolutamente privilegiado no debate público, e a cobertura desde a morte do papa Francisco até o processo do conclave mostram que "os católicos importam no maior país católico da face da Terra. O Brasil, afinal de contas, congrega 13% dos católicos, o que é muita coisa", diz o professor.
"E certamente o peso deles nas eleições, o peso do próximo papa, o peso da tradição católica vai pesar."
Entretanto, o analista ressalta que a escolha no conclave não se resume à direita e à esquerda, a progressistas e conservadores. "Há uma série de outros elementos que são importantes para medir os aspectos políticos", afirma.
Fé em jogo: disputa por fiéis pode acontecer na América Latina?
O crescimento do número de evangélicos nos últimos anos na região demonstra um expoente no campo da fé. No Brasil, segundo pesquisa do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), da Universidade de São Paulo (USP), 17 novos templos evangélicos foram abertos por dia em 2019. Se em 1990 o país contava com 17.033 igrejas, 29 anos depois já eram 109.560, um aumento de 543%.
De acordo com o professor Toniol, o aumento do número de protestantes é um receio crescente da Santa Sé, mas não ocupa todo o espaço, dado que o número de católicos é expressivo na América.
Para o pesquisador, inclusive, há outras formas de enxergar a situação, desde que o contexto seja ampliado. Por exemplo: o mundo evangélico no Brasil cresce 1% ao ano, enquanto no continente africano o crescimento de católicos é de 3%.
"Então três vezes mais é o crescimento dos católicos na África, e há uma aposta também com relação à Ásia", pondera.
Para Maria Clara Bingemer, professora de teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), não há uma disputa pela ocupação de um lugar de religião hegemônica — pelo menos por parte da Igreja Católica —, mas há uma preocupação com a drenagem de fiéis.
Isso pode vir a ser um problema para a América Latina, caso o próximo papa não dê continuidade às formas e ao trato de Francisco para com o continente, sempre carismático e com uma linguagem que atingia os latino-americanos. "Não precisa nem ser nascido aqui no continente, mas que ter essa proximidade", comenta.
Caso contrário, "pode haver um distanciamento, sim, do centro do catolicismo do povo e isso beneficiar as outras igrejas", acrescenta a especialista.
Nascido em Buenos Aires, Argentina, Bergolio sempre teve uma atuação muito forte nas comunidades mais pobres. No texto de sua biografia no site oficial do Vaticano, uma frase se destaca logo no começo: "Meu povo é pobre e eu sou um deles". O trecho dá a tônica de uma característica intangível do religioso, que adquiriu habilidade política ao acostumar-se a lidar com esses problemas.
Francisco encarnava os valores do Concílio do Vaticano II — uma das razões que o teriam tornado papa, segundo a professora Bingemer. Em um cenário em que a Igreja queria parar de ser reflexo da Europa e passar a ser uma Igreja com rosto próprio, a partir da cultura local, a escolha de Bergolio veio a calhar.
"O cardeal Bergolio, depois papa Francisco, foi um dos que mais apoiaram as comunidades populares, as expressões religiosas do povo mais pobre", recorda a pesquisadora.
© AP Photo / Silvia IzquierdoCristo Redentor iluminado com uma imagem do Papa Francisco

Cristo Redentor iluminado com uma imagem do Papa Francisco
© AP Photo / Silvia Izquierdo
Representante dessa teologia do povo, embora muito fiel à Igreja e ao papado, Francisco deixa um hiato representativo no continente. Bingemer volta a lembrar que eventuais preocupações devem se limitar à perda de espaço da religião; um "conflito aberto" entre católicos e evangélicos não deve acontecer.
Além disso, ambas as religiões dominantes no continente se preocupam não em perder uma para a outra, mas com a saída de fiéis dos templos. Muitas pessoas, sobretudo a nova geração, "não querem pertencer a nenhuma igreja".
"Querem viver sua fé livremente. Não querem estar atrelados a nenhuma instituição. Então isso também pesa na perda de fiéis", acrescenta.
No âmbito da política institucional, embora Francisco tenha cansado de "dizer que a política é a forma mais excelente e maior da caridade", uma vez que através da política é possível fazer o bem em uma escala muito maior, "católicos nunca tiveram apelo para entrar mais diretamente na política" e militantes católicos ativos ainda são poucos no espaço, explica a professora.