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Força contra força não basta: é hora de fazer trabalho de Inteligência no Rio?

A região metropolitana do Rio de Janeiro registra uma média de 25 tiroteios por dia. Longe dos gabinetes do poder público, a população e as forças de segurança vivem no fogo cruzado. Reportagem especial da Sputnik Brasil mostra os principais esforços de inteligência do estado para mudar essa realidade.
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Eduardo de Jesus brincava com seu celular na porta de casa no Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio de Janeiro. O menino de 10 anos estava próximo de sua mãe naquele 2 de abril de 2015, quando ela escutou um estrondo. Terezinha Maria de Jesus então saiu e encontrou seu filho desfalecido e mergulhado em uma poça de sangue.

Ela confrontou um dos policiais perto da cena do crime, que ele lhe ofereceu como resposta uma ameaça sob a mira de fuzil.

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Naquela quinta-feira, o ativista Thainã de Medeiros estava trabalhando em Botafogo, na Zona Sul da cidade. Os moradores impediram os policiais de chegar perto do corpo de Eduardo e chamaram o integrante do Coletivo Papo Reto assim que souberam do crime. Ele atravessou a cidade e chegou com o celular em punho:

"A gente usa nosso celular como nossa ferramenta de garantia de direitos humanos", afirmou Medeiros em entrevista à Sputnik Brasil.

Enquanto isso, os moradores formaram um cordão humano para esperar a chegada da equipe de peritos da Polícia Civil. Eles tentavam impedir uma prática comum nas periferias do Rio de Janeiro: os falsos resgates, conta Medeiros. O ativista diz que é comum os policiais militares levarem pessoas já mortas para os hospitais com o objetivo de destruir provas e impedir uma possível investigação.

A circulação quase instantânea das imagens e vídeos nas redes sociais feita pelo Coletivo Papo Reto garantiu a repercussão do caso.

Medeiros diz que foi a única vez que testemunhou o trabalho de peritos e a reconstituição de um homicídio no Complexo do Alemão — conjunto de favelas que reúne cerca de 200 mil pessoas. No período de um ano entre julho de 2016 a julho de 2017 a região registrou 225 tiroteios, segundo o banco de dados Fogo Cruzado.

"A visibilidade é um direito que dispara outros direitos. A partir do momento em que a gente torna uma pessoa visível, a gente consegue disputar. O Eduardo de Jesus não teria uma grande mobilização se ninguém soubesse que uma criança de 10 anos de idade tinha sido assassinada ali", conta Medeiros.

Qual é o tamanho do trabalho de inteligência na Segurança Pública do Rio de Janeiro?

O Rio de Janeiro é um dos estados que menos investem em informação e inteligência no Brasil. Em 2015, o gasto com o setor foi de R$ 23,5 mil. Já em 2016, a organização não encontrou nenhum centavo empregado em informação e inteligência no Rio de Janeiro.

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As cifras foram levantadas pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, organização não governamental (ONG) especializada em segurança.

A Sputnik Brasil contactou dois órgãos de combate ao crime organizado ligados ao Governo do Estado: a Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (DRACO) e o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado do Ministério Público Estadual (GAECO).

A reportagem solicitou o orçamento e o número de servidores públicos lotados nos quadros destes órgãos ao longo dos últimos anos, pela Lei de Acesso à Informação (LAI). Também foi requisitado o número de servidores que trabalham com inteligência em todo o aparato estatal.

Apesar do vencimento do prazo legal de 20 dias úteis para responder a pedidos de LAI, apenas o Ministério Público retornou e informou que há 8 servidores atualmente lotados no GAECO.

O poder público não respondeu ao pedido da reportagem sobre a DRACO. Mas a pesquisa "No sapatinho: a evolução das milícias no Rio de Janeiro (2008-2011)", realizada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), apontou em 2013 que o órgão contava com 12 servidores: 10 policiais e 2 delegados.

A Sputnik Brasil também entrou em contato com a assessoria de imprensa da Secretaria de Estado de Segurança para pedir os números e recursos do setor de inteligência, mas foi informada de que as informações são sigilosas.

São estes os recursos humanos e as quantias empregadas para combater dois dos principais vetores do crime no Rio de Janeiro, o tráfico de drogas e as milícias.

O dinheiro do tráfico vale mais que a vida das vítimas da violência

Qual é o tamanho do tráfico de drogas? Segundo estimativa do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, da Organização das Nações Unidas (UNODC), o tráfico de drogas representa algo entre 0,6% e 0,8% do PIB mundial.

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Se mantivermos essa proporção para estimar o tamanho do mercado de drogas no Brasil, o número deste segmento comercial é de R$ 359 milhões a R$ 479 milhões. Apenas no estado do Rio de Janeiro, o mercado das drogas ilícitas representa algo em torno de R$ 39 milhões a R$ 52 milhões.

O filão mais atrativo do segmento é o tráfico de cocaína. Um quilo de cocaína pura custa cerca US$ 1 mil na Bolívia, um dos principais países produtores. Quando esta mercadoria chega à Europa, seu preço vai para cerca de US$ 50 mil. De acordo com a UNODOC, o tráfico de cocaína movimentou US$ 92 bilhões em 2009 — e 92% desta quantia foram lavados pelo sistema financeiro.

"É um mercado formado por oligopólios altamente competitivos, mas diferentes das competições econômicas e das estratégias empresariais que costumamos ver. O tráfico também adota essas estratégias, mas ele também está associado à violência, já que não tem recursos jurídicos, meios lícitos de competir", afirma Taciana Santos.

Em seu mestrado no Instituto de Economia da Unicamp, Santos estudou o mercado das drogas ilícitas. Após analisar as origens de certas substâncias psicoativas, ela ressalta que muitas drogas são consideradas proibidas há pouco tempo.

Frasco de heroína da Bayer.

Dois exemplos possíveis são a própria cocaína — que foi comercializada por décadas sem nenhum problema legal durante o século XIX. Suas trocas eram como de qualquer outra commodity como café, açúcar ou soja. Outro caso emblemático é o da heroína, um opioide sintetizado pela gigante farmacêutica Bayer. O uso da heroína era recomendado para tratar bronquite e asma.

A proibição destes produtos hoje, contudo, garante maiores margens de lucros para quem opera no setor:

"Quem trafica drogas ou cultiva drogas assume um risco maior do que quem vende uma droga lícita, como o cigarro, por exemplo. É justamente por esse risco maior que menos pessoas se interessam por trabalhar nesse meio. E aqueles que se interessam o fazem porque vai dar dinheiro, lucro. O risco está diretamente relacionado ao maior ganho. Isso é uma lei da economia. Nós dizemos aos alunos de economia no início do curso: 'quanto maior o risco, maior o retorno'. Isso é válido para o mercado de ações e também para o mercado de drogas ilegais", diz a mestre pela Unicamp em entrevista à Sputnik Brasil.

Quem vigia os vigilantes?

Além do tráfico de drogas, a criminalidade no Rio de Janeiro tem uma especificidade particular: as milícias. Elas são associações entre policiais militares e civis, bombeiros e outros agentes de segurança pública para extorquir a população.

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Ao estilo da máfia, eles cobram por proteção dos moradores e comerciantes de determinadas regiões que dominam. Estes grupos criminosos, entretanto, adicionaram um toque da inventividade brasileira e também faturam com a comercialização de outros produtos como a venda de gás, água, televisão, internet, transporte alternativo e até mesmo o roubo de petróleo cru de dutos da Petrobras.

O promotor Antônio Luiz Ayres trabalha na Zona Oeste do Rio de Janeiro há mais de duas décadas e viu o nascimento, consolidação e modificações dos grupos milicianos.

Ele ressalta que estes grupos nasceram com um forte discurso contrário ao tráfico de drogas e com certa chancela do poder político. Em 2006, o então prefeito Cesar Maia falou que as milícias eram uma forma de "autodefesa comunitária". O afilhado político de Maia era Eduardo Paes, que foi prefeito carioca por dois mandatos.

Até 2008, os milicianos viveram seu apogeu em termos de visibilidade. Ayres diz que estes criminosos rodavam pela Zona Oeste da cidade em carros pretos característicos com o logo do Batman e faziam execuções à luz do dia. A principal milícia carioca à época chamava-se Liga da Justiça.

A situação muda quando jornalistas do jornal O Dia são torturados por milicianos e a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro instala a CPI das milícias a pedido de Marcelo Freixo. Na época, Marielle Franco era assessora de Freixo, e depois ela foi eleita vereadora com a bandeira de defender os direitos humanos. Uma das principais linhas de investigação de seu assassinato, e de seu motorista Anderson Gomes, é justamente a ação de milicianos.

Como resultado da CPI das milícias, figuras políticas como o então deputado estadual Natalino José Guimarães e o vereador Jerônimo Guimarães Filho, o Jerominho, são presos por envolvimento com a Liga da Justiça.

Ayres ressalta que a milícia passou a alterar seu modus operandi e começou a agir nas sombras. "Eles fazem o que o terrorismo internacional faz hoje, eles não têm rosto, não há identificação."

"A milícia trabalha de forma empresarial, eles são muito mais espertos que os traficantes. Primeiro porque eles sabem quais são as falhas do estado na investigação, a dificuldade do estado em descobrir a prática de crimes. Eles têm uma visão empresarial muito mais específica", diz o promotor em entrevista à Sputnik Brasil.

O discurso de combate ao tráfico de drogas também é abandonado. Para o promotor Ayres, esta alteração responde a uma lógica empresarial: "O tráfico movimenta bilhões de dólares por ano. É mais do que o PIB de muitos países do mundo. Então qualquer organização criminosa não vai querer abrir mão desse lucro. E a milícia não é diferente. Como eles são agentes do estado, o risco é quase nenhum."

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O ex-membro do Gaeco diz que os milicianos atuam em conjunto com a organização criminosa Terceiro Comando Puro para combater e tomar áreas do Comando Vermelho — principal organização do tráfico de drogas carioca.

O promotor diz que a principal fonte de renda destes grupos criminosos é o transporte alternativo. Ao todo, Ayres estima que as milícias controlam áreas em que vivem cerca de 2 milhões de pessoas em todo o estado do Rio Janeiro. Ele calcula que todas as milícias do estado faturam cerca de R$ 1,5 bilhão por ano. De acordo com o promotor, estas são estimativas modestas.

Baixada Fluminense e curral eleitoral

Enquanto no Rio de Janeiro as milícias buscam disfarçar sua presença, na Baixada Fluminense não há qualquer receio em exibir seu poder, afirma o sociólogo e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) José Cláudio Souza Alves.

Alves conta que a nova fronteira dos negócios dos milicianos é a venda de terrenos na Baixada Fluminense. O professor afirma que os grupos criminosos apropriam-se de terrenos da União e fazem terraplanagem em áreas de preservação permanente para criar loteamentos — e conseguem lavar o dinheiro sem problemas ao obterem a documentação legal nos cartórios de registro de imóveis da região.

O professor da UFRRJ diz não se surpreender com o processo de lavagem de dinheiro dentro da estrutura do estado, já que este mecanismo nada mais é do que uma "atualização" da grilagem que aconteceu na Baixada durante a década de 1970. "É uma estrutura intocável e que pertence ao Judiciário."

"Você tem secretário de Meio Ambiente na Baixada que controla o esquema de venda de caminhões-pipa para as escolas municipais públicas — porque essas escolas não têm sistema de fornecimento de água próprio. E quem vende com um valor relativamente alto são os milicianos."

PM no Rio de Janeiro.

O sociólogo também conta sobre envolvimento entre poder público, milícia e uma multinacional. Ele diz que, em 2015, o Comando Vermelho tomou uma região em que uma multinacional tinha um setor de coleta e controle de qualidade de água utilizada em sua produção. A organização criminosa, então, passou a exigir R$ 5 mil por semana da companhia internacional. Descontente com a situação, a multinacional reuniu-se com comandantes da PM e representantes do Poder Executivo municipal.

"Logo após esse grande acordo, a milícia vai entrar nessa área em uma operação extremamente ousada, com armas com silencioso, todos encapuzados e com nomes e endereços de pessoas para matar. Houve um trabalho de inteligência muito bem feito pelo próprio aparato policial. Essas pessoas são assassinadas e os moradores falam em mais de 20 pessoas mortas saindo de dentro de um caminhão. E não há notícia em lugar nenhum sobre isso."

Alves ressalta que é o próprio poder público que ajuda a organizar o crime:

"O Estado é determinante nessa organização, não é que ele seja corrompido, ou que ele foi sequestrado por grupos criminosos. O próprio Estado em si é o organizador de tudo isso. São agentes do Estado, representantes do Parlamento, Poder Legislativo, membros eleitos do Executivo, são membros do Judiciário que respaldam essa estrutura toda."

Estudando a violência na Baixada Fluminense há 25 anos, Alves afirma que os grupos milicianos monitoram o voto de quem mora em regiões com sua influência com extrema precisão: "Eles têm controle preciso de cada rua, cada habitante. Sabem onde o voto é depositado, sabem a zona, a sessão eleitoral. Esses votos são computados e vendidos. Somente determinados candidatos fazem campanha em área de milícia, eles pagam para ter acesso a esses votos."

Ele também relembra o episódio do helicóptero ligado à família do senador Zezé Perrella (PTB-RJ) capturado com 445 quilos de cocaína em operação da Polícia Federal em 2013. O piloto da aeronave era funcionário da Assembleia Legislativa mineira por indicação do então deputado estadual Gustavo Perrella, filho de Zezé.

"A estrutura política vive da estrutura da droga. O helicóptero do Perrella é apenas o caixa dois desses grupos todos. Mesmo que a investigação não chegue em ninguém. Meia tonelada de cocaína e ninguém sabe a quem pertence? Isso é uma piada."

Fogo Cruzado: tentativa de entender e localizar a violência no Rio

Mesmo sob intervenção das Forças Armadas na segurança pública, a região metropolitana do Rio de Janeiro registrou 782 tiroteios no mês de março de 2018. Uma média de 25 tiroteios por dia. Mas esses dados não são da PM, do governo no estado ou do Gabinete da Intervenção Federal.

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Eles são do laboratório de dados Fogo Cruzado, que desde 2016 registra trocas de tiros em um aplicativo que conta com mapa interativo. A iniciativa civil também rastreou 163 mortos e 93 feridos apenas no mês de março de 2018. O Rio de Janeiro foi a cidade mais violenta do período, com 463 tiroteios e 67 mortes.

A Sputnik Brasil entrevistou a jornalista e pesquisadora Cecília Olliveira, idealizadora do Fogo Cruzado. Ela conta que o projeto nasceu de uma necessidade sua como comunicadora de encontrar números sobre balas perdidas e violência armada — dados que não eram catalogados e sistematizados.

Ela ressalta que o poder público ignora o poder das milícias na cidade: "Enquanto o Estado foca as suas forças no tráfico de drogas, as milícias se fortaleceram a tal ponto que na capital do Rio de Janeiro 65% das denúncias recebidas pelo Disque Denúncia são relativas às milícias."

O Fogo Cruzado nasceu com o apoio da Anistia Internacional e hoje conta com financiamento da OAK Foundation. Com uma equipe de 7 membros, a iniciativa já registrou 10.803 tiroteios de meados de 2016 até abril de 2018. No mesmo período foram catalogados 2.458 mortos e 2.418 feridos.

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Cecília Olliveira diz que o Fogo Cruzado nunca foi procurado pelo poder público. "Eles ignoram a gente solenemente."

Sete meses após a morte de Eduardo de Jesus, o inquérito da Polícia Civil concluiu que o tiro responsável por matar o menino de 10 anos partiu de um fuzil da Polícia Militar e que o atirador estava há cerca de 5 metros. A Divisão de Homicídios concluiu que os PMs agiram em legítima defesa e ninguém foi responsabilizado criminalmente.

Em 2015, o governo estadual investiu R$ 252,7 mil em policiamento. Já em 2016, indica o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o investimento com policiamento saltou 129,5% e foi para R$ 579,9 mil. A resposta foi mais do mesmo. A repressão tem ganhado da Inteligência.

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