Era quarta-feira, 3 de setembro de 1969 quando os gramados do Estádio Governador Magalhães Pinto, o Mineirão, se pintaram de verde e amarelo de um lado e vermelho e branco do outro. Uma noite memorável na história do futebol do Brasil: a Seleção Brasileira de Futebol - sob comando de João Saldanha vinda de uma sequência de seis vitórias em seis partidas, com 23 gols marcados e apenas 2 sofridos - e a equipe do Atlético Mineiro, usando uniforme pouco habitual em referência às cores da bandeira da Federação Mineira de Futebol.
Nas arquibancadas do estádio, um torcedor incomum observava a partida: o general Emílio Garrastazu Médici, que dali a poucas semanas, após um período de 60 dias de governo por uma junta militar devido ao derrame cerebral do marechal Artur da Costa e Silva, se tornaria o terceiro presidente da Ditadura brasileira.
Torcedor inconteste do Internacional, Médici observava atentamente um jogador em especial, Dario José dos Santos, o Dadá Maravilha, que pouco tempo antes tinha liderado uma vitória contra o Colorado gaúcho. Dono da incrível marca de 40 gols na temporada de 1969, o carioca à época já se firmava como estrela do Atlético. Era também conhecido pela pouca disciplina e pelas declarações provocativas à imprensa esportiva. Talvez por isso, odiado pelo técnico João Saldanha. A quem quisesse ouvir dizia: “Na minha seleção, Dadá não joga. No Brasil há pelo menos dez centroavantes melhor que ele”.
“Diga a João Saldanha que a Seleção está invicta porque não enfrentou o Dadá”, alardeou o jogador. A provocação atiçou os nervos da seleção, um dos fatores que podem ter contribuído para a magistral derrota da Canarinho. Aos olhos de 70 mil torcedores, o Brasil perdeu para o Atlético por 2 a 1, com gol da vitória marcado por Dadá.
João Havelange, posteriormente presidente da FIFA, foi ter com o treinador. Ainda tentou convencê-lo a ceder à vontade do militar, lembra Dadá, sem sucesso. Diante da ordem, foi o responsável por comunicar a demissão. Para a história, ele seria conhecido como “João Sem-Medo”. Na época, contudo, perdeu a chance de liderar a equipe com craques como Pelé e Rivelino, ganhadora da terceira Copa do Mundo e considerada a melhor Seleção da história.
Dadá, como queria o general, foi convocado. E começou aí a intervenção militar na Seleção, usada como exemplo máximo do sucesso do regime. Pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (FALE/UFMG), Élcio Cornelsen estuda há décadas a relação do esporte com a política no Brasil. Ele conta que a intervenção do ditador na lista de convocados foi apenas um ponto de um projeto muito maior.
“A relação entre política e futebol naquele contexto da Copa de 70 é muito mais profunda do que isso. Houve uma intervenção militar na própria preparação da equipe brasileira, que começou em 68, com a comissão técnica composta por membros da Escola Superior de Educação Física do Exército, com Cláudio Coutinho e Carlos Alberto Parreira, oficiais com níveis de capitão”, conta Cornelsen. Com a conquista do título, veio o uso político. “A gente percebe pelas imagens da época, com fotografias, filmes [como foi usado]”.
Os jogadores foram recebidos como heróis. Mais um capítulo de uma tradição longa em misturar futebol e política.
De rivalidades à integração nacional, o futebol como arma política
A Copa de 70 pode ter entrado para a história pela intervenção do general, mas o precedente vem de muito antes. Como conta Cornelsen, o futebol como arma de poder data de 40 anos antes. À época, a rivalidade entre o estado do Rio de Janeiro e de São Paulo causou um racha, responsável por levar ao Uruguai apenas atletas cariocas.
“Houve uma dissidência entre a Confederação Brasileira de Desportos (CBD), fundada em 1914 de âmbito nacional e a Associação Paulista de Esportes Atléticos (APEA). A APEA pretendia forçar a CBD a integrar a federação paulista na comissão técnica, a CBD se recusou e a APEA proibiu que jogadores afiliados a ela de disputar [a Copa]. Isso já estava no contexto político de uma rivalidade que culminaria com a Revolução de 1930 [golpe de Estado que derrubou o presidente paulista Washington Luís] e a Revolução Constitucionalista de 32 [guerra separatista que pretendia independentizar São Paulo]", conta o professor.
Posteriormente, na Era Vargas, o esporte já profissionalizado foi a arma do governo não de legitimação da ditadura do Estado Novo, mas de integração nacional. Em 50, em plena industrialização, o Brasil usaria a Copa do Mundo sediada no país como vitrine para expor o país no âmbito mundial.
Não por acaso, Nelson Rodrigues cunharia a expressão: “Brasil, a pátria de chuteiras”. Pelas seguidas utilizações, o esporte e a formalização do Estado-nação seriam indissociáveis.
'O público consome Neymar celebridade, não Neymar jogador'
“Futebol e política se misturam como água e sabão, e seria ainda melhor se um e outro fossem mais limpos do que são”. Assim o jornalista Juca Kfouri abre um capítulo de suas memórias no livro “Confesso que Perdi”. Considerado o mais importante cronista esportivo em atividade no Brasil, Juca acumula na memória o sem-número de vezes em que o esporte e os bastidores em Brasília foram a mesma coisa.
Em 94, fosse a seleção derrotada nos Estados Unidos, Juca acredita que seria Lula o vencedor das eleições presidenciais daquele ano. Após a morte de Ayton Senna, “a única coisa que o brasileiro ainda se apegava” nas palavras do próprio Kfouri, era provável que o brasileiro acabasse optando por um político não tradicional. “Apareceu o tetra no bojo do Plano Real e as coisas se conjuntam de tal maneira que favorecem a eleição do professor Fernando Henrique Cardoso, que normalmente não seria eleito em um país como o Brasil, com aquele discurso e racionalidade”, avalia em entrevista à Sputnik.
Soa cartunesco. Como recorda, nos tempos de ditadura e ainda um aguerrido militante de esquerda, Juca constantemente criticava o Rei do Futebol pelo seu pouco envolvimento na política e sua aparente indiferença em relação ao governo militar. Acabou por tornar aquele que detestava em ministro.
“Meu pai dizia ‘exija do Pelé que ele faça gols, Pelé é só um jogador de futebol’. Não gosto de pensar assim porque não acho que alguém seja uma coisa só e ponto, gostaria muito de ver os esportistas brasileiros tendo posturas como a do LeBron James em relação ao Trump, por exemplo. Mas o Pelé era um simplório e como tal, politicamente foi realmente um zero à esquerda e já não representa coisa nenhuma”, critica. A relação entre os dois ruiu quando o “Rei” usou de sua influência em Brasília para abafar uma CPI que investigaria a extensa rede de corrupção da CBF.
Na Seleção atual, já não há ninguém para ocupar o vácuo de ídolos com influência, pensa o jornalista. E imaginar o uso político de um possível título como capital para qualquer pré-candidato é irrealista. Se em 94 Lula capitalizaria o desgosto nacional com a derrota, em 2018 já não há grande relevância dos jogadores e prestígio com a população.
Em tempos de jogadores com milhões de seguidores no Instagram - o próprio Neymar em 2014 fez bombar a hashtag #SomosTodosMacacos contra o racismo no futebol, só para depois se descobrir que se tratava de uma campanha publicitária da agência Loducca (atual LDC) -, a forma de acompanhar o esporte também sofreu mudanças.
Autor de 'Futebol e poder: algumas reflexões sobre o jogo da política', artigo publicado em coletânea pela Editora Vozes, o jornalista José Esmeraldo Gonçalves argumenta que os jogadores atuais são consumidos como estrelas.
“Essa identificação passou a ser sazonal. O leitor se identifica com Neymar como celebridade. O Neymar da Bruna Marquezine, Neymar que comprou uma mansão e um helicóptero. Você se aproxima do jogador na Copa, ao longo do ano a gente o vê na Liga dos Campeões na Europa. Antes era com o clube [para o qual você torcia], a base da seleção vinda do Vasco, Botafogo, Flamengo. Não é mais como era antes, uma proximidade quase íntima”.
Uma publicação compartilhada por Nj 🇧🇷 👻 neymarjr (@neymarjr) em 27 de Mai, 2018 às 12:32 PDT
“O país amadureceu, o brasileiro não se submete mais a isso. A Seleção sequer foi ao Palácio do Planalto se despedir, como era frequente e como se faz em boa parte do mundo até hoje. Acho bom separar essas coisas. Embora tenha toda a poesia que tem, a Copa do Mundo é um festival de futebol e só me resta torcer para que seja de bom nível”, conclui Juca.
Médici ‘coração de dama’ e admiração ao ditador
A relação entre a Granja Comary e o Palácio do Planalto pode ter se estremecido, mas permanece viva na memória dos craques do século passado. Dadá, que mesmo na reserva foi campeão em 70, sofreu a mesma pecha que Juca atribui a Pelé: foi acusado pelos intelectuais da época de colaboracionista do regime.
“Nós jogadores nos dávamos muito bem com os militares”, conta. Sobre as inúmeras denúncias de crimes políticos, se esquiva dizendo que “na época não se falava sobre isso”. E vai além. “Muitas das denúncias [de violação de direitos humanos] são manipuladas porque ninguém tem coragem de falar as coisas quando a pessoa está viva, mas quando morre fala até o que não aconteceu, coisa que sonhou”.
Escolhido pelo ditador, Dadá ainda hoje diz que não se envolve em política “porque não quer virar ladrão”. Ídolo de outrora, o ex-jogador lembra com saudade do período negro da história brasileira. Tem saudade da ditadura. “Minha visão sobre Médici não mudou, ele é meu ídolo, sou fã dele porque o que eu soube verdadeiramente é que ele tinha um coração de dama”.