Apesar da alegada boa relação entre o presidente Jair Bolsonaro e o chefe de Estado norte-americano, Donald Trump, recentemente, o comércio entre Brasil e Estados Unidos atingiu o seu menor nível em 11 anos. Com a vitória de Joe Biden na eleição presidencial e a provável mudança na Casa Branca, há temores de que a tensão entre o governo brasileiro e o líder democrata atrapalhe ainda mais as trocas bilaterais.
Embora a China siga firme como parceira do Brasil, existem preocupações também sobre até que ponto poderia ir a paciência de Pequim com as constantes declarações e medidas polêmicas por parte de Brasília em relação aos chineses.
Com a União Europeia também demonstrando incômodo com o governo brasileiro principalmente por conta de questões ambientais, a África surge como uma alternativa interessante para as exportações brasileiras, segundo aponta um novo estudo da equipe de economistas da Análise Econômica Consultoria.
De acordo com o levantamento, há grande potencial econômico vindo dos quase 60 países e regiões autônomas do continente africano, cujo aumento das importações poderia representar um grande potencial de crescimento para a indústria brasileira.
Dados citados no documento mostram que, de 2010 a 2019, a África — assim como a Ásia — aumentou a sua participação nas importações mundiais, saindo de 2,4%, entre 2000 e 2009, para 3% na década posterior. No mesmo período, a participação da América Latina caiu de 24,4% para 21,4%.
Entre 2001 e 2005, o Brasil exportou, em média, cerca de US$ 3,5 bilhões (R$ 19 bilhões) ao continente africano, anualmente. De 2006 a 2010 foram US$ 8,8 bilhões (R$ 48 bilhões), enquanto que entre 2011 e 2015 foram US$ 10,7 bilhões (R$ 58,4 bilhões) e, de 2016 a 2019, US$ 8,2 bilhões (R$ 44,7 bilhões). Já as exportações da África para o Brasil saíram de uma média anual de US$ 7,7 bilhões (R$ 42 bilhões) entre 2001 e 2010 para US$ 10,6 bilhões (R$ 57,8 bilhões) entre 2011 e 2019.
"Note que as exportações brasileiras apresentaram sensível redução a partir de 2013, o que acaba por diminuir, relativamente, o argumento de que a perda relativa do comércio brasileiro se deu em função do avanço dos produtos chineses. Em 2020, as exportações para a África acumuladas entre janeiro e setembro somaram US$ 5,6 bilhões (R$ 30,5 bilhões), menor volume desde 2006. Evidentemente, temos o impacto da pandemia, mas o número vem sendo sistematicamente diminuído na última década", destaca o relatório.
Brasil poderia aproveitar demanda africana por manufaturados
Em declarações à Sputnik Brasil, André Galhardo, economista-chefe da Análise Econômica Consultoria, explicou que a redução das exportações brasileiras para o continente africano nos últimos anos não pode ser atribuída puramente a uma questão ideológica, tendo mais a ver com questões de dificuldades enfrentadas por países africanos nesse período, sobretudo os exportadores de petróleo.
"Se você for pensar na forma como Bolsonaro e alguns dos seus ministros têm tocado a política nacional, era para estar muito pior. A nossa sorte é que nós temos produtos dos quais o mundo precisa", avalia.
Segundo o analista, a costa oeste da África e a África Subsaariana apresentam "oportunidades em potencial" para produtos manufaturados, caminho que poderia ser mais explorado pelos produtores brasileiros.
"Eles precisam importar produtos industrializados, e o Brasil poderia focar e atender esses países. Claro, a gente tem dificuldade para atender a nossa própria própria demanda doméstica. Então, trata-se de uma oportunidade em potencial. Seria uma fuga explorar novos mercados. No nosso estudo, a gente mostra que, enquanto a participação relativa das exportações para a África caíram, e em volume também caíram, quando você olha a relação da China com a África, a situação melhorou muito nos últimos dez anos. Então, é um mercado em potencial", afirma. "A parte da África Subsaariana, os países que ficam abaixo do deserto do Saara, é um mercado em potencial para produtos manufaturados brasileiros, cada um à sua maneira. Mas eu apostaria, neste momento, mais na costa oeste africana."
Além da China, Galhardo frisa que algumas nações do Sudeste Asiático também demonstram um interesse muito grande na África, que acaba sendo recíproco. Nesse sentido, ele acredita que sendo o Brasil "substituível" em "boa parte das coisas que a África precisa", seria importante o governo brasileiro fazer um esforço maior para se reaproximar desse continente.
"Esse discurso beligerante, essa coisa de que está tudo errado, de que o mundo está do avesso, só o Brasil está certo, isso pode ser prejudicial. É claro que se você olhar a corrente de comércio do Brasil com a África, já é relativamente pequena e tem diminuído nos últimos anos. Então, talvez, o Brasil nem se interesse muito por isso. O que é, definitivamente, um erro, pelo potencial que o continente africano tem para os negócios brasileiros."
Brasil olha para a África, 'mas não enxerga'
Para o professor João Bosco Monte, presidente do Instituto Brasil-África, o Brasil olha para o continente africano, há algum tempo, "com um apetite voraz". Olha, "mas não enxerga", o que, segundo ele, é um grande problema.
Também em entrevista à Sputnik, o especialista lembra que a África ganhou destaque em Brasília principalmente no início do mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na primeira década deste século, havendo uma troca muito boa entre agentes de governo e do empresariado dos dois lados do Atlântico. Mas esse contato acabou perdendo força com o passar dos anos, sendo deixado um pouco de lado pela atual gestão, o que ele também diz considerar um erro.
"Agora, com o presidente Bolsonaro, a África não foi destacada na sua agenda externa. E, obviamente, é importante a gente destacar que o não destaque para a África é também reverberado para não destaque para outras regiões. O governo brasileiro apontou o seu radar quase que exclusivamente para os Estados Unidos. Isso é ruim, não é bom, ao contrário. E, com o continente africano, eu entendo que, sim, há uma negligência. Por quê? Porque é um continente muito rico, com bastante olhar de diversos lugares", argumenta.
Embora a África seja um mercado em potencial para, praticamente, todos os tipos de produtos, Monte frisa que, pelo fato de se tratar de um continente com matérias-primas em abundância, os países africanos se tornam interessantes, em especial, para exportações de produtos industrializados, que, de fato, não são muito numerosos por lá, em comparação com outras regiões.
"Há uma classe média que começa a despontar em alguns contextos africanos. Claro que não são todas as cidades. Mas cidades como Nairóbi, como Acra, Abidjan, Joanesburgo, Kinshasa são cidades que têm populações bem interessantes, são cidades populosas, e que têm, hoje, poder de compra expressivo. Além disso, têm uma juventude que, cada vez, está mais à frente de oportunidades de negócios. E isso o Brasil precisa ver."
Além de vender produtos manufaturados e agrícolas para a África, o professor sugere que o Brasil também poderia investir em parcerias para produzir itens agrícolas no continente africano e também em projetos de infraestrutura e construção de moradias, entre outras coisas.
"Além disso, você tem a possibilidade de transferência de tecnologia. Seja na área da saúde, seja na área de inovação e tecnologias, seja na área também de educação. Essas áreas são muito oportunas. E é importante também nós destacarmos que o Brasil está perdendo espaço para outras nações. A Índia, a Turquia, o Japão, a China — nem se fala, obviamente — e alguns países europeus identificam que a bola da vez é o continente africano. Nós estamos falando de 1,2 bilhão de pessoas."
Assim como o Brasil costumava olhar para a África, a África, segundo João Bosco Monte, também olha para o Brasil com "apetite muito grande". Mas, para que essa cooperação funcione melhor, é preciso "haver uma outra postura" do lado de cá, tanto em termos empresariais como no mais alto escalão.
"Também é necessário destacar que, sem ação objetiva do Estado, do governo, essa aproximação fica mais difícil. O africano quer conversar com o Brasil — e nós estamos sendo testemunhas dessa aproximação —, mas é preciso que haja um esforço conjunto, um esforço de todos, inclusive do governo."