No final de janeiro, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) aceitou o pedido do Brasil para entrar na entidade, e desde então, Brasília recebeu a luz verde da organização para iniciar formalmente as negociações para ingresso na entidade.
Das 251 normas instituídas para fazer parte da OCDE, o Brasil já aderiu a 103 instrumentos, entretanto, uma decisão do governo Bolsonaro pode afetar o caminho a ser percorrido para que o país se torne membro da organização.
Após determinar o corte de R$ 1,7 bilhão no orçamento de 2022 destinado à Receita Federal, a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Unafisco) pretende denunciar à OCDE a medida, uma vez que tal ação pode paralisar atividades do eSocial. De acordo com os auditores, o orçamento disponibilizado para a Receita Federal caiu de R$ 3,8 bilhões para R$ 1,2 bilhão nos últimos três anos, segundo o jornal Extra.
"A OCDE tem o compromisso de combater a sonegação, o terrorismo e transações ilícitas internacionais. Mas, na medida em que enfraquece a Receita Federal com o corte orçamentário, o Brasil enfraquece o combate a tudo isso", afirmou o presidente da Unafisco, Mauro Silva citado pelo Poder 360.
Silva disse ainda que "a OCDE precisa saber que o Brasil está se comprometendo com algo, mas, na prática, está fazendo o contrário, ao desmontar a fiscalização tributária".
A Sputnik Brasil entrevistou especialistas para saber se a redução da verba da Receita complicará o ingresso do Brasil na organização.
Agentes da Receita Federal fazem apreensão de carga de cigarro contrabandeado do Paraguai, na cidade de Foz do Iguaçu, no Paraná (foto de arquivo)
© Folhapress / Lalo de Almeida
De fato, a verba retirada do orçamento da Receita Federal de 2022 é bastante significativa, uma vez que "corresponde a mais de 40% da dotação orçamentária da instituição", segundo Leonardo Trevisan, economista e mestre em História Econômica, doutor em Ciência Política pela USP e professor da ESPM e da PUC.
Para o especialista entrevistado para reportagem, a medida afeta todo o organismo da Receita e dificulta a execução de uma série de atividades importantes, como "a repressão ao contrabando e à sonegação e a vigilância de portos e aeroportos".
"Esta atitude do governo, nesta violência de corte, é um clássico 'tiro no pé' […]. A Receita Federal vigia uma dotação orçamentária de R$ 1,7 trilhão, para quem fiscaliza tamanha dotação, é evidente que diminuir uma oferta de verba vai prejudicar exatamente essa capitação [trilionária] de recursos com os quais os próprios programas do governo federal são viabilizados", explica Trevisan.
O economista também ressalta outro ponto preocupante da medida: ter sido determinada visando projeção eleitoral do atual governo para as eleições de 2022, já que a verba concederia aumento salarial a policiais federais, um dos grupos no qual a gestão Bolsonaro mais tem apoiadores.
"De algum modo, esse fato [o corte na Receita para aumento do salário] tem alguma razão de ser porque não há nenhuma resposta contrária do próprio Ministério da Fazenda sobre a redução da verba."
Visita ao Posto da Polícia Rodoviária Federal em São Paulo. Na foto, ao meio, presidente Jair Bolsonaro, seu filho deputado Eduardo Bolsonaro à esquerda e em primeiro André Mendonça, ministro do STF, 20 de setembro de 2020
© Carolina Antunes / Palácio do Planalto / CC BY 2.0
Caso a determinação seja levada adiante, Trevisan volta a sinalizar a gravidade da ação, que deve gerar apreensão até mesmo no Congresso, visto que "toda dotação orçamentária do país depende, justamente, do controle que a Receita Federal faz com sonegação e contrabando […], se com o corte a instituição tiver menos chance de fiscalização, é evidente que vamos ter um alto prejuízo na arrecadação".
"Essa medida é preocupante e pode levar a consequências bastante graves para economia brasileira", analisa.
Queixa dos auditores à OCDE
Sobre o formato de queixa escolhido pela Unafisco para ser feita à OCDE, Trevisan elucida que o padrão está exatamente dentro do que a organização espera, pois um dos propósitos do "Clube dos Ricos" – como a OCDE é popularmente conhecida – é o de fazer com que a "captação de recursos seja feita sobre os que possuem mais riqueza e pagam mais impostos".
Para isso, há uma "proteção de toda a estrutura de vigilância para que a captação venha dos que mais tem e não dos que menos tem", ou seja, justamente o papel desenvolvido pela Receita Federal.
"O que está sinalizado com esse corte, e por isso a Unafisco se volta à denúncia, é que o Brasil não está cumprindo uma das primeiras determinações da adesão à organização que é o caráter progressivo na cobrança tributária. Além disso, todos os itens da Receita Federal fazem parte de um formato de reforma tributária que o país precisa, sem dúvidas, cumprir para poder ingressar na OCDE."
A busca pela integração brasileira à organização é antiga, e vem desde o governo Temer (2016-2019), o qual visava uma recuperação econômica com bases liberais, sendo tal política perpetuada no governo Bolsonaro, segundo Vinícius Rodrigues Vieira, professor de Relações Internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado e da FGV.
Sendo esse um dos pontos altos da política externa da atual gestão, a Unafisco sabe da importância do ingresso brasileiro no órgão, portanto, os auditores usam a queixa "como um instrumento para fazer valer suas posições domésticas", diz o professor entrevistado pela Sputnik Brasil.
Encontro Bilateral com Jair Bolsonaro e o secretário-geral da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), Mathias Cormann, Itália, 30 de outubro de 2021
© Foto / CC BY 2.0 / Alan Santos / Palácio do Planalto
O intuito do Brasil na organização, segundo o especialista, é atrair investimentos e dar um "selo de qualidade" ao país, no entanto, Vieira ressalta que não basta ser membro da organização para "alcançar progresso econômico", e cita como referência o México e o Chile, que aderiram à OCDE, e não obtiveram grandes transformações benéficas em sua economia.
Tal ponto também foi alertado pelo ex-chanceler da gestão Lula, Celso Amorim, no final de janeiro, quando verbalizou sobre o assunto: "[…] Essa coisa de 'pseudosselo' de qualidade já era. O Chile teve uma crise do neoliberalismo brutal nas ruas. O México, [...] foi um dos que mais sofreram com a crise do [banco] Lehman Brothers [2008]. Ser da OCDE não fez com que o México recebesse mais investimentos que o Brasil", declarou Amorim conforme noticiado.
Contudo, Vieira lembra que o Brasil já faz parte do BRICS, e caso realmente ingresse na OCDE, teria uma "posição única mundial de barganha", pois ao mesmo tempo que conversa com países emergentes como China e Rússia no BRICS, também dialoga com "nações do Ocidente, de economias democráticas e capitalismo de mercado tradicionais" presentes na organização.
O secretário de Estado Antony Blinken (à esquerda) se encontra com o ministro das Relações Exteriores italiano Luigi Di Maio (à direita) em reunião da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em Paris, em 6 de outubro de 2021
© AFP 2023 / Patrick Semansky
Apesar de ter sido revelado através de documentos do Pandora Papers que membros do governo Bolsonaro têm dinheiro em paraísos fiscais, o professor não acredita que uma certa dificuldade para inserção do Brasil na OCDE ocorra por grandes corrupções, mas sim por práticas mais "domésticas" supostamente efetuadas pelo mandatário.
"Por exemplo, a notória ligação do presidente com grupos que estão à margem da lei, como milicianos no Rio de Janeiro […]; sua ligação com o disparo de mensagens em massa através de aplicativos como Telegram para sua campanha [...]. E em relação a grandes escândalos, poderíamos citar sua gestão na pandemia, como a compra da cloroquina do governo dos EUA e a compra e produção deste medicamento por parte do Exército […]."
Outras integrações possíveis para o Brasil
Questionado sobre outros tipos de adesões e integrações que o Brasil poderia desenvolver com prioridade, Vieira cita que o país teria ganhos se "barganhasse de forma mais contundente dentro do próprio BRICS, principalmente com a China".
Ao mesmo tempo, solicitar o status de observador na Organização para Cooperação de Xangai (OCX) seria benéfico para ampliar sua participação internacional.
Outro ponto ressaltado pelo especialista, é a consideração por parte do governo brasileiro para efetuar mais acordos bilaterais de comércio "sem renunciar ao Mercosul", visto que "o bloco é fundamental para que o Brasil volte à sua posição de potência média na região a qual negocia com todo mundo".
LIX Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul e Estados Associados através de videoconferência, 17 de dezembro de 2021
© Foto / Clauber Cleber Caetano/ Palácio do Planalto / CC BY 2.0
Além da importância de regressar ao nível de potência regional, Vieira sublinha que, no atual momento, o país está "de costas para América Latina", e que seu retorno à Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) seria um passo valoroso a ser dado.
"O Brasil tem que pensar em si. Quantos mais organizações ele fizer parte, maior o seu poder de negociação para ter concessões e parcerias oriundas tanto do Ocidente quanto das potências emergentes", complementa o especialista.