Panorama internacional

'Nem sempre juntos, mas nunca um contra o outro': entenda a posição da China sobre crise na Ucrânia

Posição da China em relação à operação militar russa na Ucrânia é discreta, mas Pequim pode eventualmente se beneficiar do caos na Europa, acredita especialista russa.
Sputnik
Nesta terça-feira (1º), a China resolveu sair da toca e se pronunciar sobre a operação militar russa na Ucrânia. Cauteloso, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores de Pequim celebrou as negociações entre russos e ucranianos na cidade belarussa de Gomel.
"A China sempre apoia e encoraja esforços diplomáticos que conduzam a uma resolução pacífica da crise na Ucrânia, e acolhe com satisfação as negociações de paz entre Rússia e Ucrânia", disse o porta-voz da chancelaria chinesa, Wang Wenbin.
No mesmo dia, o ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, conversou com seu homólogo ucraniano por telefone e se disse "extremamente preocupado com os danos aos civis" na Ucrânia.
A posição discreta da China indica que o país tem pouco a perder com o conflito entre Rússia e Ucrânia. Mas um olhar mais atento indica que Pequim pode se beneficiar do contencioso na Europa.

"O desvio da atenção dos EUA e seus aliados da Ásia para a Europa é vantajoso para Pequim", disse à Sputnik Brasil a professora de Estudos Orientais e pesquisadora associada do Centro de Estudos Chineses Integrados e Projetos Regionais do Instituto Estatal de Relações Internacionais de Moscou (MGIMO, na sigla em russo) Anna Kireeva.

Segundo a especialista, a operação militar da Rússia na Ucrânia exige que os EUA e seus aliados invistam recursos políticos e militares no continente europeu, desviando o foco da região asiática.
Desde o governo Barack Obama, os EUA têm declarado a intenção de reorientar os seus recursos da política externa e de defesa para a Ásia, em detrimento de regiões como Europa ou Oriente Médio.
Soldados taiwaneses fazem saudação durante celebrações do Dia Nacional em frente ao Edifício Presidencial em Taipé, Taiwan, 10 de outubro de 2021
Algumas iniciativas recentes de Washington podem ser analisadas sob esse prisma, como a reativação do Diálogo de Segurança Quadrilateral (QUAD) entre EUA, Japão, Índia e Austrália e mesmo a retirada de tropas dos EUA do Afeganistão, que colocou fim à chamada "guerra ao terror" no Oriente Médio.
"O foco na Europa faz com que seja mais difícil a repartição de recursos entre as regiões asiáticas e europeia por parte dos EUA e seus aliados", acredita Kireeva. "Sem dúvida alguma, essa situação é vantajosa para a China, uma vez que ela encontrará menos resistência por parte dos Estados Unidos e seus aliados na região do Indo-Pacífico, o que garante mais liberdade de ação na Ásia para a realização de projetos como a Rota da Seda."
No entanto, a especialista acredita que, no médio e longo prazo, os EUA devem voltar a investir recursos na sua política de contenção da China.
Bandeiras da República Popular da China e dos EUA em um poste de iluminação perto do Capitólio dos EUA, em Washington, EUA, 18 de janeiro de 2011
"É questionável [...] que isso imponha obstáculos sérios à execução da estratégica norte-americana para a região do Indo-Pacífico no longo prazo", acredita Kireeva. "Isso pode acontecer somente em caso de formação de uma aliança político-militar oficial e abrangente entre Rússia e China."

Taiwan não é a Ucrânia

Especialistas questionam se a operação militar russa na Ucrânia poderia abrir um precedente que encorajaria Pequim a resolver suas diferenças com Taiwan pela via militar.
A independência de Taiwan foi proclamada após grupos políticos derrotados durante a Revolução Chinesa fugirem para a ilha, em 1949. Pequim considera a ilha uma província rebelde e insiste na sua reincorporação ao país.
Para Kireeva, os cálculos de Pequim sobre os efeitos de uma operação militar em Taiwan podem ter sido alterados pelo conflito entre Rússia e Ucrânia.
"De fato, podemos sugerir que uma solução da questão de Taiwan baseada na força poderá ser avaliada por Pequim de forma mais realista após as ações russas em relação à Ucrânia. Mas devemos lembrar que as questões de Taiwan e Ucrânia são bastante diferentes", aponta a especialista.
Segundo ela, "se os EUA e a OTAN insistem que a resposta às ações russas não será militar, mas sim na forma de sanções econômicas, o caso de Taiwan é outro".
Ela lembra que o presidente dos EUA, Joe Biden, declarou de forma clara que Washington estaria disposto a defender Taiwan em caso de conflito com a China.
O presidente Joe Biden escuta, enquanto se encontra virtualmente com o presidente chinês Xi Jinping, na Sala Roosevelt da Casa Branca em Washington, segunda-feira, 15 de novembro de 2021
"A intervenção direta dos EUA nesse conflito, assim como a possível participação de aliados dos EUA, como Japão e Austrália, levaria a uma situação totalmente diferente, que poderia, de fato, levar a um conflito direto e muito sério entre EUA e China – um cenário muito arriscado para Pequim", acredita Kiereeva.
O risco de uma invasão chinesa a Taiwan como consequência da crise na Ucrânia foi levantado pelo primeiro-ministro do Reino Unido Boris Johnson. Em resposta aos comentários de Johnson, a porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China Hua Chunying rejeitou a correlação.
"Taiwan não é a Ucrânia", disse Hua. "Taiwan sempre foi uma parte inalienável da China. Isso é um fato histórico legal e irrefutável."
A porta-voz lembrou, no entanto, que "forças estrangeiras" agem, tanto na Ucrânia quanto em Taiwan, para promover uma "guerra cognitiva" e afetar a moral das sociedades.

Inimigo comum

A posição da China em relação à operação militar russa na Ucrânia é determinada pelo fato de que Moscou e Pequim são alvos de políticas de contenção conduzidas pelos EUA e seus aliados.
"A China se viu em uma situação complicada, uma vez que, por um lado, ela está ligada à Rússia por laços de uma parceria estratégica e compartilha muitas das preocupações de Moscou com a política dos EUA", disse Kireeva. "Mas, por outro lado, a China não tem interesse em ser incluída em um conflito com o Ocidente em função da Ucrânia."
Nesse contexto, "a China tenta encontrar uma posição de equilíbrio e neutralidade que não seja interpretada como um apoio incondicional à Rússia, nem como uma condenação a Moscou".
A especialista lembra que, após a visita de Vladimir Putin à China em fevereiro deste ano, Pequim se opôs a expansão da OTAN rumo ao leste e apoiou as garantias de segurança solicitadas por Moscou em relação à segurança europeia.
A porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Hua Chunying, reage durante a coletiva de imprensa diária no Ministério das Relações Exteriores em Pequim, 23 de fevereiro de 2022
Além disso, em declaração no dia 24 de fevereiro, "o Ministério das Relações Exteriores da China acusou os EUA de não respeitarem eles próprios os princípios de soberania e integridade territorial dos Estados", relatou Kireeva.
No entanto, é necessário lembrar que as relações econômicas com os países ocidentais são vitais para os interesses chineses e que Pequim "não tem interesse em sacrificar essas relações por causa do conflito russo-ucraniano".
Por isso, a especialista acredita que a Rússia não deve esperar um aprofundamento do apoio chinês para além do fornecido atualmente.
"A China tenta manter uma posição neutra que reflita a fórmula 'nem sempre juntos, mas nunca um contra o outro'. Mas, na prática, manter o equilíbrio em um conflito tão sério entre a Rússia e o Ocidente não pode ser considerada uma tarefa fácil", concluiu a especialista russa.
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