Assim como é inimaginável um processo de "desglobalização" no século 21, quando as crises globais ocorrem, as cadeias de produção internacionais inexoravelmente se tornam vítimas da volatilidade dos preços. Foi assim durante a pandemia de COVID-19.
Com o conflito na Ucrânia, dadas as sanções dos EUA e seus aliados contra a Rússia, eram de se esperar consequências para as economias no mundo, como o aumento de preços e o desabastecimento de alguns produtos.
Entre a insegurança dos investidores e os problemas que atingem as camadas mais vulneráveis do Brasil com o impacto de um furacão, é preciso pensar em alternativas para fugir da alta dos preços, da falta de insumos e da fome.
É nesse sentido que economistas consultados por esta reportagem divergiram: mais Estado ou mais "mão invisível"? Qual arcabouço de estratégias pode minimizar o impacto dos fatores externos em setores de produção estratégicos para o desenvolvimento do Brasil?
A avaliação de Walter Franco, professor de macroeconomia e finanças corporativas do Ibmec, é a de que "as cadeias de produção voltarão ao normal" em breve, e, por essa razão, o Brasil precisa ter principalmente paciência para superar as distorções no mercado internacional. "No curto prazo, as coisas estarão nos eixos", comentou.
Esse caminho, no entanto, é considerado arriscado para outros dois economistas, Lauro Barillari, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Fabio Sobral, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC). Em um contraponto ao entendimento de Walter Franco, eles afirmaram que o Brasil carece de organização e medidas paliativas, coordenadas pelo Estado brasileiro, para contornar os efeitos das sanções internacionais sobre a economia russa.
Para eles, a alta nos preços dos alimentos, assim como a política de preços da Petrobras que envolve o uso de combustível, são problemas que poderiam ser resolvidos caso o país adotasse medidas para proteger a sua economia. Ambos argumentam que, diante de crises globais severas, como se vê no cerceamento da economia russa, os países precisam estar protegidos.
A crise dos preços tem relação com a política nacional para o agronegócio?
Um dos principais problemas envolvendo a atual crise econômica do Brasil é o custo dos alimentos nas prateleiras dos supermercados. Muitos apontam uma contradição entre o Brasil ser um grande exportador de produtos agrícolas e de pecuária e as dificuldades para os brasileiros garantirem uma alimentação qualificada.
Walter Franco rejeita essa aparente contradição. Ele observou que o PIB do país passa dos R$ 7 trilhões, mas o agronegócio representa apenas 6,5% desse valor. Nesse sentido, o economista explicou que há uma confusão entre a importância do agro para o PIB e o poder aquisitivo das famílias brasileiras.
"A economia brasileira é aberta e globalizada, cuja grande parte dos preços internos é balizada pelo mercado externo. A taxa de dólares influencia a taxa de commodities e outros fatores. Desse modo, o poder aquisitivo das famílias está pouco ligado ao agro. Nosso agro é o melhor, o mais dinâmico do mundo, mas não é o maior gerador de empregos."
Após ter deixado o Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2014, o Brasil tem convivido com um cenário de crescente insegurança alimentar. No ano passado, 19 milhões de brasileiros passaram fome, e mais da metade dos domicílios no país enfrentou algum grau de insegurança alimentar, segundo dados da Rede Penssan.
O problema tem diversas justificativas, como a inflação que afeta gêneros alimentícios básicos desde o ano passado e o alto índice de desemprego. Embora integre a cadeia produtiva do país, o agronegócio é um mercado dominado globalmente por um seleto grupo de multinacionais. Juntas, as empresas ADM, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus controlam 70% da produção, comercialização e transporte de produtos agrícolas.
O setor é marcado por sucessivas fusões entre grandes marcas, que aumentam a concentração nos mercados de sementes, agrotóxicos e terras. Nessa configuração, o foco do agronegócio está no atendimento da demanda global por commodities, que vivem um boom de preços.
Como um setor capitalista globalizado que produz commodities, o agronegócio vende para qualquer mercado que puder comprar. O arroz, por exemplo, é um dos itens da rotina alimentar dos brasileiros que mais foram afetados pela inflação, chegando a registrar 70% de aumento nos preços ao longo de 12 meses.
Entre a Escola de Chicago e a crise
Tradicionalmente, a intervenção do Estado na economia é uma linha que separa economistas em duas correntes. Desde 2016, como observou Walter Franco, o Brasil tem uma economia de mercado aberta. Por essa razão, "não há como reduzir impactos" em um período de curto prazo, pois qualquer intervenção poderia assustar o mercado financeiro. Ele lembrou, citando alguns dados, o bom momento que a Bolsa de Valores de São Paulo está vivendo.
Segundo ele, os preços são internacionais, e "não há como fazer nada. O Brasil não deve buscar interferência do Estado na composição dos preços internos". Walter Franco acrescentou que se há algo que possa ser feito neste momento, é a "busca por alternativas" na indústria nacional.
Ministro da Economia, Paulo Guedes, no lançamento do Plano Safra 2021/2022 do Banco do Brasil.
© Marcos Corrêa / Palácio do Planalto / CC by 2.0
Na verdade, "a busca por alternativas na indústria nacional" é um problema histórico do Brasil, agravado nos últimos anos por um processo de desindustrialização. A crise na indústria brasileira foi publicamente deflagrada durante a pandemia de COVID-19. O coronavírus expôs o estado depreciado da indústria nacional, com falta de insumos, respiradores e diversos outros produtos.
Não obstante, os três economistas consultados por esta reportagem apontam que a principal saída no Brasil para a crise global em função do conflito na Ucrânia e das sanções internacionais é justamente o investimento na indústria brasileira. Franco aponta para a necessidade de uma reforma tributária ampla, que tenha um olhar especial sobre impostos pagos pelo setor industrial do país.
Para Lauro Barillari, as reformas são importantes, mas é preciso que venham acompanhadas por uma série de investimentos adjacentes, como um plano que garanta que parte das commodities do país seja destinada ao consumo nacional. Porém os investimentos estruturais, como apontou o economista, "quase não têm respaldo" na equipe de Paulo Guedes, ministro da Economia do Brasil.
Embora seja um defensor da redução de impostos sobre o setor industrial, o ministro brasileiro se opõe ao controle do Estado sobre a economia. Desse modo, ele parece compartilhar da visão exposta por Walter Franco. Segundo ele, "as cadeias de produção voltarão ao normal. O combustível e os alimentos vinham com altos preços, mas em função da COVID-19. A inflação neste momento é global e é causada mais pela pandemia do que pela Ucrânia" e pelas sanções norte-americanas.
Fabio Sobral, por sua vez, denuncia a fé cega do governo de Jair Bolsonaro na iniciativa privada, "como se o mercado fosse ser regulado por si só". Para ele, a inércia do Estado "provoca fome, e eles preferem atender aos interesses do mercado do que à capacidade de sobreviver dos brasileiros". Ele aponta que "há diversos fatores que justificam o empobrecimento da população brasileira", a despeito do conflito na Europa e da pandemia que arrasou o país.
'A população está mais pobre'
As divergências entre os especialistas, apesar de qualquer viés ideológico, apontam que não existe uma "receita de bolo" para fugir da crise global. Desse modo, é preciso tratar cada mercado, seja o agronegócio, a indústria, o setor de serviços ou o mercado financeiro, a partir de suas particularidades e das necessidades da população.
Por um lado, essa segregação fica evidente ao se levar em conta a política de preços da Petrobras, a mais importante estatal brasileira, que até o momento em que esta reportagem foi escrita, permanecia sem um presidente devidamente indicado por Jair Bolsonaro. A ausência de um representante na empresa é símbolo da delicada discussão sobre o que fazer com uma política de preços dolarizados.
Analogamente, essa discussão se estende ao agronegócio brasileiro. Fabio Sobral explicou que "boa parte do agro é voltada para o exterior", sem nenhuma necessidade de atender o mercado interno, que sofre com preços dolarizados. E enquanto eles sobem por fatores externos, os salários são achatados, e isso provoca uma enorme distorção social", comentou.
Lauro Barillari explicou que "para minimizar os impactos dos fatores externos na economia do Brasil, a gente precisa incentivar a indústria nacional através de reformas, como a tributária, e tendo um projeto de longo prazo para a criação de uma matriz industrial, diversificada, que esteja alinhada com as demandas e interesses nacionais".
Ele entende que o Brasil apenas sofre impacto de fatores externos se não houver nenhum controle sobre as exportações industriais e de commodities.
"É preciso instruir cotas de exportação, assim como outras políticas públicas para garantir o mínimo à população", enfatizou.
Os efeitos da crise, na visão dele, "podem ser mitigados através da redução de impostos, reformas estruturantes que incidam no preço da gasolina e dos transportes e investimento em novas matrizes de transporte, como ferroviária e hidroviária, além de incentivar pesquisa e desenvolvimento para tecnologias que reduzam a dependência de insumos importados".