Desde o advento das redes sociais como ferramenta de comunicação na sociedade ocidental, o jornalismo moderno passou a percorrer caminhos perigosos. Os profissionais de imprensa, quando não censurados, tornam-se vítimas de linchamentos digitais, como se fossem culpados pelas informações que apuraram.
Não é de hoje que a aliança entre poderes políticos e econômicos busca ter um "oligopólio da verdade" por meio de empresas de comunicação ligadas a interesses dos EUA. A ingerência norte-americana nos pilares da democracia latina, por exemplo, não é novidade e tem amplo registro histórico.
Por isso, no Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, é fundamental falar também sobre censura, reconhecendo que jornalistas trabalham para lançar luz sobre questões que devem ser conhecidas, seja no âmbito local, destacando as questões da política interna de cada país, ou mundial, percebendo as nuances de eventos delicados como os atuais conflitos na Ucrânia, no Mali, no Iêmen ou na Cisjordânia.
Nos últimos meses, a mídia russa tornou-se alvo de ataques e restrições coordenadas por governos europeus e pelas gigantes de tecnologia dos EUA. A perseguição abre jurisprudência: quem será o próximo? Até onde irá a sanha ocidental pelo controle da narrativa? Quem poderá definir quais informações são socialmente pertinentes e quais serão previamente recriminadas?
Mundo novo, roteiro velho
Sem dúvidas o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa levanta questões pertinentes sobre o poder de censura das redes sociais, que agem muitas vezes à margem das leis de cada país. Recentemente, no início de abril, o jornal O Globo publicou um anúncio do Google que criticava um projeto de lei brasileiro em trânsito no Congresso.
O deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), autor do projeto, apressou-se para condenar a ingerência da empresa norte-americana. Ele a acusou de usar "conteúdo alheio para enriquecer" e não ter "ética e nem solidariedade com quem produz informação". O Google argumenta que o "Projeto de Lei 2630 pode obrigar" a empresa a "financiar notícias falsas".
O exemplo ilustra a percepção do recém-eleito presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Otávio Costa. Ele avalia que o debate acerca da presença das redes sociais na vida das pessoas passa principalmente pela capacidade de diferenciar "narrativa" de "informação falsa". Para ele, a regulação das redes sociais é passível de discussão, mas é preciso dar tempo à população para se acostumar com o fenômeno, que é recente.
Ele avalia que a imprensa é (e será) naturalmente formada por narrativas, "e é fundamental que todas elas estejam presentes nas redes sociais". Como apontou, essa variedade de versões deve incluir a de que "forças militares ucranianas são nazistas, porque elas o são". "E isso não veio à tona" com a preocupação necessária até agora nos editoriais brasileiros sobre a operação militar da Rússia.
Agnaldo dos Santos, professor de ciência política da Universidade Estadual Paulista (Unesp), avalia que "antes de mais nada, é preciso levar em conta que as plataformas que suportam as redes sociais contemporâneas são propriedade de grandes corporações transnacionais. Isso, de saída, já determina a forma como os debates ocorrem, porque não estamos falando de espaços públicos".
A questão sobre o debate nos espaços públicos e nas mídias digitais é delicada. Quando as redes sociais apareceram, muitos apontaram que elas levariam à democratização dos meios de comunicação e garantiriam maior acesso à informação, representando um grande passo para o aperfeiçoamento das democracias representativas.
De repente o tempo passou, e a sensação é que as democracias estão em vertigem, como se estivessem morrendo por dentro, a exemplo da obra de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (o livro "Como as Democracias Morrem"). Agnaldo dos Santos disse que quando levamos em conta a estrutura de desigualdade histórica da América Latina, o cenário envolvendo as redes sociais é preocupante.
"Uma combinação de analfabetismo funcional, acesso precário às informações, desconhecimento da dinâmica dos algoritmos que privilegia algumas informações em detrimento de outras, utilização de metadados para traçar o perfil de consumo do usuário, tudo isso aponta para um quadro muito perturbador", avaliou.
Liberdade de imprensa?
Para que a imprensa seja livre, Agnaldo dos Santos defendeu enfaticamente que "ela precisa levar em conta a garantia de multiplicidade de opiniões, para não ser uma imposição do mais forte (quer seja economicamente, militarmente ou ambos) sobre o mais fraco".
Dessa perspectiva clássica, apontou, "a liberdade de imprensa vai mal no mundo todo, especialmente no Brasil, onde a concentração empresarial da mídia é avassaladora". Segundo ele, esse fenômeno de acumulação de poder "explica em grande medida a censura que órgãos como a Sputnik andam sofrendo em diversas partes do mundo".
A agência de notícias Sputnik vem sofrendo um conjunto de medidas restritivas de empresas donas das mais importantes redes sociais globais, principalmente na União Europeia (UE). Em fevereiro, a UE anunciou o bloqueio das transmissões da RT e da Sputnik para os países do bloco.
Além das contas da Sputnik, os jornalistas que trabalham para a agência estão sendo rotulados nas redes sociais com os dizeres "mídia controlada pelo Estado da Rússia". A marcação já era feita nas páginas da agência. Os jornalistas da Sputnik Brasil também já sofreram com as medidas no Twitter, que começou a aplicar o rótulo das páginas nas contas pessoais de alguns funcionários.
A censura atualmente está relacionada ao conflito na Ucrânia, mas abrangeu anteriormente questões ligadas às vacinas e à COVID-19, à guerra na Síria e à intervenção francesa no Mali. Vale lembrar que, no fim de 2019, a Sputnik Estônia foi pressionada pelas autoridades do país a encerrar suas operações.
No Brasil, o YouTube derrubou o acesso ao canal da Sputnik Brasil em sua plataforma. Pouco antes, a empresa havia anunciado que bloquearia, em todo o mundo, os canais de mídias financiadas pelo Estado russo. Segundo a empresa, a operação militar especial russa na Ucrânia se enquadra em sua política de eventos violentos. Em comparação, a mesma iniciativa não foi tomada durante a guerra no Afeganistão.
Silêncio internacional
Em um mundo tão diverso, parece óbvio que democracias dependam do estabelecimento de espaços para a comparação de narrativas e opiniões. Porém é justamente nesse sentido que as redes sociais impedem o desenvolvimento democrático do Brasil e de outros países.
Otávio Costa, presidente da ABI, observou que no Ocidente a narrativa influenciada pelos norte-americanos é historicamente muito forte, sobretudo pelas relações de poder econômico estabelecidas por Washington. Ele relembra que o mundo apoiou a Guerra do Vietnã por muitos anos, até as primeiras imagens do uso de napalm correrem o mundo.
Segundo ele, aos poucos a percepção global sobre o conflito na Ucrânia está mudando. "Temos uma narrativa quase única da guerra, mas agora, creio, está melhorando. Em Londres, houve uma manifestação em favor da Rússia, pois atletas estão sendo punidos e não podem participar [do torneio de tênis] de Wimbledon. Isso é um absurdo", disse.
Costa acha que a revolta, embora pequena perto de um contexto mais amplo, como o conflito e as sanções sobre a economia russa, revela que o sentimento anti-Rússia alimentado pelas redes sociais precisa parar. "É evidente que os russos estão unidos, porque o país corre uma ameaça: o cinturão da OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte] é uma ameaça".
Agnaldo dos Santos, por sua vez, entende que o mundo ocidental (notadamente os EUA e a Europa) se vê como a "polícia do mundo" e sente que deveria impor sua visão de democracia — um liberalismo político pautado pelo poder econômico de grandes corporações e indivíduos milionários influentes.
"Tudo aquilo que sai dessa métrica é classificado como sistema autoritário, populista e outros predicados negativos. Ao meu ver, um dos grandes erros daqueles que enxergam um declínio inexorável do poderio estadunidense é desconsiderar a enorme influência do complexo cultural e tecnológico deles", comentou.
O especialista entende que as agências de notícias internacionais são absolutamente dominadas pelos interesses ocidentais e que na periferia do sistema "a mídia corporativa do Brasil apenas reproduz de maneira acrítica tudo que chega do norte".
Segundo ele, quando um militar aposentado estadunidense vai a um programa de TV para dizer que as intervenções de seu país nas últimas décadas "foram muito mais violentas do que as que ocorrem hoje na operação russa na Ucrânia, apenas fica sabendo dessa opinião quem vasculha blogs e sites alternativos na Internet".
Dessa forma, mesmo que a ascensão econômica da China e da Ásia como um todo se mantenha nos próximos anos, a influência cultural estadunidense continuará forte, principalmente entre os países latinos.
Soluções: entre o Estado e o 'faroeste'
Recentemente, Google, Meta (empresa extremista banida no território da Rússia), Twitter e outras gigantes das redes sociais precisarão fazer mais para combater o conteúdo ilegal que circula pelo continente europeu ou enfrentarão multas e punições sob as novas regras para a Internet acordadas pela União Europeia. O acordo, feito no último dia 24, veio após mais de 16 horas de negociações, escreve o The Guardian.
O amplo Ato para Serviços Digitais (DSA, na sigla em inglês) pode multar uma empresa em até 6% de seu faturamento global caso haja violação das regras. Infrações repetidas podem resultar na proibição a companhias de tecnologia de fazer negócios na UE. A lei foi elaborada em um cenário de ação política e regulatória de âmbito mundial contra plataformas on-line.
As novas obrigações incluem a remoção mais rápida de conteúdo e bens ilegais, a explicação a usuários e pesquisadores de como seus algoritmos funcionam e a tomada de medidas mais rigorosas contra a disseminação de informações erradas. Táticas que induzem ao fornecimento de dados pessoais a empresas on-line também serão proibidas.
Para os especialistas, o Brasil também precisa entrar nessa discussão. Otávio Costa, embora crítico de grandes intervenções do Estado no âmbito da liberdade de expressão e da prática jornalística, entende que se não houver ao menos um autocontrole das redes, a situação pode se transformar em um "faroeste".
Agnaldo dos Santos disse que não há soluções fáceis para a atual situação. "Em primeiro lugar, a pluralidade de visões só pode ser garantida com a desconcentração empresarial da mídia. Não é possível que países como o Brasil tenham diversas mídias concentradas nas mãos de poucos donos."
Segundo ele, esse debate é sempre interditado por essas corporações, que confundem deliberadamente "liberdade de imprensa" com "liberdade de empresa", ou seja, liberdade para concentração econômica. "No longo prazo, melhorar a qualidade da educação, com caráter inclusivo e democrático, também poderia garantir as condições de produzir e distribuir informações de qualidade", comentou.
"E isso significa que a legislação deve garantir a livre manifestação de opiniões, desde que não façam apologia a posições criminosas, como o racismo, a xenofobia, o machismo, os assédios sexual e moral, entre outras, que certa narrativa defende ser apenas opiniões", concluiu.