Panorama internacional

Brasil, Argentina e Uruguai podem reconhecer genocídio durante Guerra do Paraguai?

Uma comissão criada no Parlamento do Mercosul (Parlasul) busca alcançar uma "verdade compartilhada" sobre a Guerra da Tríplice Aliança, que devastou o Paraguai no século XIX. A Sputnik Brasil conversou com o presidente do conselho, Ricardo Canese, e o jurista Paulo Abrão, da Coalizão Brasil por Memória, Verdade e Justiça, para entender o processo.
Sputnik
Desde o dia 6 de junho, a Comissão de Direitos Humanos e Cidadania do Parlasul realiza uma série de audiências públicas para debater os crimes de lesa-humanidade e genocídio que teriam sido cometidos pelos países da Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) durante a guerra que devastou o Paraguai entre 1864 e 1870.
As discussões são feitas no âmbito da Subcomissão de Memória e Verdade, instituída pelo Parlasul, em abril, em votação unânime. Após 150 anos do fim da guerra, os crimes cometidos no período nunca foram debatidos em um foro internacional sobre memória e reparação.
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Segundo a declaração do Parlasul, a guerra da Tríplice Aliança promoveu um "genocídio" que vitimou 90% da população masculina do Paraguai, além de mulheres, crianças e idosos. O documento destaca que o conflito ainda promoveu a escravidão do povo paraguaio e o saqueio do país.
A comissão reconhece que a Guerra da Tríplice Aliança foi o conflito de guerra mais importante e sangrento já registrado na América do Sul.

"Isso nunca foi devidamente analisado no Parlasul em termos de verdade e justiça, apesar da evidência de gravíssimos delitos de lesa-humanidade, incluindo assassinatos massivos contra crianças e doentes", diz trecho da declaração do Parlasul que estabeleceu a subcomissão.

Em entrevista à Sputnik Brasil, o presidente da subcomissão, Ricardo Canese, destacou a importância de se discutir o tema no Parlasul e explicou a necessidade da constituição de uma "verdade compartilhada" sobre episódios traumáticos capaz de criar uma base para a integração social e econômica e para uma política sólida.

"No Mercosul, apesar de terem passado mais de 150 anos, não havia sido aberta até agora uma discussão sobre os crimes de guerra, os crimes de lesa-humanidade e o genocídio contra o povo paraguaio cometidos durante a Guerra da Tríplice Aliança. É importante debater sobre isso para constituir uma verdade compartilhada", disse Canese.

Canese destaca que na unificação dos Estados Unidos e na criação da União Europeia houve processos de construção de uma verdade compartilhada, respectivamente sobre a Guerra de Secessão e sobre a Segunda Guerra Mundial.
"Ninguém duvida que a escravidão deveria ser abolida nos Estados Unidos e que triunfaram na Guerra de Secessão aqueles que levantaram essa pauta. Ninguém duvida que o nazifascismo cometeu crimes de guerra, de lesa-humanidade e o genocídio dos povos judeus, ciganos e eslavos. Essa verdade compartilhada ajudou a criar uma base para a integração sólida", destacou.
Paulo Abrão, presidente da Coalizão Brasil por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia e ex-secretário-executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), disse à Sputnik Brasil que acredita que a subcomissão do Parlasul é muito importante por promover uma reflexão crítica a respeito de violações de direitos humanos, independentemente do período em que elas foram cometidas.

"Ainda que a Guerra da Tríplice Aliança tenha findado há mais de 150 anos, a urgência de elucidar os excessos cometidos naquelas batalhas pouco se alterou. No Brasil, por exemplo, quando políticas de memória dessa natureza foram implementadas para esclarecer os crimes da ditadura militar, as principais reações contrárias a essas medidas apontavam a distância temporal entre o fim do regime e a implementação das comissões da verdade. Contudo crimes de lesa-humanidade e/ou genocídios não têm prazo de validade."

Canese explicou que o objetivo da subcomissão é escutar todos os pesquisadores, historiadores e descendentes para promover um debate regional sobre o tema e, a partir disso, constituir a verdade compartilhada sobre os crimes de guerra. Inicialmente a busca é por respostas a perguntas mais "simples".

"Antes de entrar em detalhes bélicos ou políticos, deveríamos responder preguntas simples: foram assassinadas ou não milhares de crianças paraguaias pelas tropas da Tríplice Aliança? Foram violadas milhares de mulheres paraguaias? Assunção foi saqueada pelas tropas, e o saldo foi repartido entre os países Aliados? Foram assassinados milhares de prisioneiros de guerra desarmados? Foram incendiados hospitais com centenas de feridos, queimados vivos? Crianças, mulheres e idosos foram levados como escravos depois da guerra?", declarou Canese.

O parlamentar disse que se essas perguntas forem respondidas já haverá um enorme avanço. Sobre eventuais medidas judiciais ou de reparação, Canese apontou que esse não é o foco no momento.

"Ainda é prematuro falar de justiça ou reparações. Agora estamos concentrados em escutar todas as vozes. Por isso, fizemos um chamado público e teremos audiências em todos os países do Mercosul, sem obrigar ninguém a ir. A partir dos testemunhos, documentos e exposições, debateremos em três instâncias, a subcomissão, a comissão de direitos humanos e o plenário. A prioridade será consensuar uma verdade compartilhada. Se chegarmos a esse ponto, será fácil avançar para o segundo objetivo, que será a justiça", declarou Canese.

"Há de se destacar que o máximo que podemos fazer como Parlasul é 'declarar' ou 'recomendar' medidas, não temos força resolutiva como outros mecanismos — como é o caso do Parlamento Europeu", completou.
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Abrão enxerga a situação da mesma maneira. Para ele, "mais importante que reparações pecuniárias é o reconhecimento, por parte de Argentina, Brasil e Uruguai, dos prejuízos acarretados ao Paraguai durante e após a Guerra".

"Ainda que não seja possível reverter a maioria dos danos materiais e psicológicos herdados pelos paraguaios, o atestado moral de que, realmente, houve essas violações é de suma importância para seguirmos rumo ao rompimento total com o legado deixado por guerras, ditaduras e outros conflitos que reduzem a história dos países latino-americanos à extrema violência. Ademais, reparações coletivas e massivas dessa natureza se fazem mediante políticas de compensação histórica, com investimentos públicos que possam melhorar a vida nas regiões atingidas e dos povos descendentes das vítimas", avalia o jurista.

Abrão, que também foi presidente da Comissão de Anistia (órgão de reparação e memória para as vítimas da ditadura civil-militar brasileira), se mostrou bastante entusiasmado com a iniciativa e disse que ela pode servir de inspiração para outros processos na região. Defende, inclusive, que o tema seja levado à Reunião de Altas Autoridades sobre Direitos Humanos, do Mercosul.
Ele destaca ainda que a discussão sobre a Guerra da Tríplice Aliança pode ser muito importante para o Brasil repensar suas relações com os demais países sul-americanos.
"A Guerra do Paraguai ocupa um lugar de destaque nas narrativas que tentam contar a história do Brasil de um ponto de vista mítico e heróico, ignorando as profundas violências que marcam a nossa trajetória histórica e a construção da própria nacionalidade. Para nós brasileiros, repensar o lugar da Guerra do Paraguai pode nos fazer encarar com mais centralidade a dimensão imperialista que sempre marcou a relação do Brasil com nossos vizinhos sul-americanos", afirmou.

"A Guerra da Tríplice Aliança é central para os mitos de origem do Exército Brasileiro, inclusive em relação a seu patrono, Duque de Caxias. Caxias, até hoje apresentado como um herói nacional, foi na verdade responsável por violências bárbaras durante a campanha militar no Paraguai. Crimes estes que ele já havia cometido ao comandar a repressão às diversas revoltas que marcaram o período histórico da regência", destacou Abrão.

Até o momento, foram realizadas seis audiências na subcomissão e mais duas são previstas. Segundo Canese, os trabalhos da subcomissão vão continuar em outros países e devem promover visitas a lugares históricos no Paraguai que foram afetados pelo conflito.
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