Carandiru 30 anos: as razões do caos no sistema carcerário brasileiro
19:08, 29 de setembro 2022
Lotação, rebeliões e líderes encarcerados comandando facções são características do sistema prisional brasileiro. Trinta anos depois do Massacre do Carandiru, em São Paulo, qual é o retrato dos presídios no país? Em conversa com a Sputnik Brasil, especialistas em segurança pública explicam o que deu errado no sistema carcerário brasileiro.
SputnikEra 2 de outubro de 1992 quando a Polícia Militar de São Paulo invadiu o presídio do Carandiru para reprimir uma rebelião. A ação durou cerca de 20 minutos e deixou 111 mortos. Com o tempo, o Carandiru também virou sinônimo de impunidade, e até hoje nenhum responsável pela chacina foi preso.
O comandante da invasão (que seguiu ordens do então governador, Luís Antônio Fleury), coronel Ubiratan Guimarães, ao tentar se eleger deputado estadual, fez campanha com o número 111, uma alusão às vítimas, que ele apresentava como um troféu.
A normalização da barbárie é uma das tragédias sociais que foram impostas aos brasileiros após anos de violência contra negros e pobres, em nome de uma declarada guerra às drogas que nunca deu resultado, embora tenha se tornado o motivo do caos carcerário no Brasil, como apontam dois especialistas em segurança pública à Sputnik Brasil.
Eles argumentam que enquanto as prisões do país estão cada vez mais lotadas, rebeliões se transformam em prática recorrente, principalmente quando uma imensa massa de presos por menores delitos se torna refém dos verdadeiros barões do tráfico de drogas.
Tanto para o professor Lenin Pires, do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF) e diretor do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (Ineac), da mesma universidade, quanto para Dirceu Franco Ferreira, doutorando da Universidade de São Paulo (USP) e autor de "Rebelião e Reforma Prisional em São Paulo: uma História da Fuga em Massa da Ilha Anchieta em 1952", entendem que o sistema carcerário brasileiro, após 30 anos de Carandiru, teve pequenas evoluções, embora tenha se transformado, nas palavras de Lenin Pires, em uma "máquina para moer carne negra".
Carandiru, o 'divisor de águas'
A percepção do professor da UFF é justificada pelos dados do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que revelou que São Paulo é o estado do Brasil onde mais presos morrem. Na prática, diz o órgão, é como se acontecessem quatro "Carandirus" por ano.
Dirceu Franco Ferreira explica que, desde a invasão no Carandiru, houve aprendizado, "pois o Carandiru,
do ponto de vista do aprisionamento contemporâneo, foi um divisor de águas". Ele relembra que antes do massacre,
houve uma discussão nacional no sentido de democratizar as prisões e "uma tendência forte em colocar o presídio como uma instituição visível ao público".
20 de setembro 2022, 09:00
Segundo ele, "os presos precisam estar inseridos na sociedade" e por essa razão foram criados alguns canais de comunicação para que eles pudessem colocar suas reivindicações. "Os presos, de alguma maneira, se ouvidos, não optariam pela rebelião", disse, explicando em seguida que a tendência "mexeu com uma parte conservadora da sociedade e também com poderes consolidados dentro dessas instituições", sobretudo guardas de presídio.
"Que aprendizado se tira? Essas tendências muito fortes de humanização dos presos foram silenciadas pelo Massacre do Carandiru. Elas ganham força dentro das instituições, mas fora delas, na sociedade, isso não aconteceu", disse Dirceu Franco Ferreira à Sputnik Brasil.
Ele explicou que a partir de 1992 "começa uma tendência de abertura de presídios menores, com uma grande reforma prisional. Há uma nova cartografia do sistema prisional". Essa mudança, do ponto de vista da rotina, possibilitou "o surgimento do Primeiro Comando da Capital (PCC)".
Presídios modernos e novo caos carcerário
O massacre de 1992 precede o PCC, que foi fundado em um anexo da Casa de Custódia de Taubaté, um lugar que desde os anos 1960 vem se consolidando como uma espécie de ultimato das prisões. "Esse anexo era uma prisão endurecida, com celas fortes e destinadas aos presos incorrigíveis", relembra Dirceu Franco Ferreira.
Quando acontece o massacre de 1992, muitos presos são transferidos para Taubaté. Em função desse remanejamento se organiza o PCC.
Para Lenin Pires, essa reorganização prisional pós-massacre, diferentemente do que se costuma pensar, não transformou a prisão em uma instituição voltada para a ressocialização. "Para falar em ressocialização, presume-se que há um sistema igualitário de recursos públicos, e no Brasil
as desigualdades são bastante acentuadas. Então ressocializar é um problema,
haja vista que o nosso direito desiguala, com prisão especial, domiciliar e outras. Portanto uma prisão que não está voltada para a ressocialização está voltada para quê?", questionou, em entrevista à Sputnik Brasil.
O especialista em segurança pública da UFF, em seu argumento, recorre ao filósofo francês Michel Foucault e ao conceito deste de prisão moderna, uma instituição disciplinar que difere daquela do suplício. "Não existe prisão, existe suplício. No Brasil, a prisão é voltada para ampliar o esculacho, o suplício, e é um lugar que deu origem às chamadas facções criminais, que nasceram contra o esculacho de grupos poderosos na cadeia."
Para ele, o Brasil aprendeu quase nada a partir do Carandiru, pois o país acompanhou o surgimento de facções que foram ressignificadas, como o PCC e o Comando Vermelho (CV), que entram em conflito com outras facções. "As prisões, principalmente as penitenciárias, são parte desse grande mercado de drogas e armas e ilegalismo, e existem diferentes tipos de presos. Por isso, quando há situações mais difíceis, ocorrem os massacres", disse.
Ele explicou que "existem grupos criminosos que distribuem armas e drogas dentro dos presídios. Dependendo do lugar, das negociações, do nível de interação desses grupos com agentes penitenciários em situação de desvio, com agentes que colaboram com o crime, a superlotação dos presídios vai atender a essa configuração. Se discute com muita naturalidade criminosos históricos que estão presos e continuam mandando no tráfico de drogas e grupos de milícias".
A máquina de moer carne
Lenin Pires aponta que há uma quantidade enorme de presos sem inquérito, com flagrantes mal construídos. São pessoas, defende, que poderiam cumprir penas alternativas, sob a supervisão de um sistema penal de reinserção na unidade social. Mas, do jeito que está, quando essa gente chega no sistema, precisa entrar no sistema criminal, em uma facção, por uma questão de sobrevivência. "Existem hoje diversas facções no Rio de Janeiro, como CV, TCP [Terceiro Comando Puro], ADA [Amigos dos Amigos] e Povo de Israel", analisou.
Dirceu Franco Ferreira, em análise semelhante, explica que "quando acontece uma rebelião, o sistema encontra os cabeças e faz a transferência para presídios diferentes. Isso resulta naturalmente em um potencial de organização para a facção em diversos presídios. O PCC se valeu dessa estratégia para multiplicar sua atuação", comentou.
Ele defende que, "a partir de um discurso bastante politizado, o PCC gerou proteção aos presos". Além disso, o Estado sempre teve uma postura de blindar os presídios de qualquer crítica: "No início, dizia-se que o PCC era uma invenção da imprensa, um mito. Até o dia que o PCC articulou 28 rebeliões, em diversas unidades prisionais".
"Ao longo da história, o modelo da penitenciária se consolidou como forma de punição, sobretudo a partir do século XIX. O que acontece é que, ao longo dos últimos dois séculos, esse modelo punitivo não recebeu muitas críticas. No caso brasileiro, sempre predominou o modelo da detenção, sem passar pelo Poder Judiciário. Uma sociedade que não garante o direito ao trabalho garante o direito à prisão", afirmou.
Ele entende que o país precisa "de uma agenda pelo desencarceramento. Isso não significa abolir a prisão. O que se defende é o mínimo carcerário. Levar para a cadeia apenas aqueles que representam uma ameaça à sociedade".
O professor Lenin Pires avalia que é muito difícil pensar em uma solução para esse sistema sem pensar na segurança pública como um todo. Para ele, é preciso repensar a guerra às drogas, "
que é o carro chefe das ações das polícias e faz a alegria de advogados, promotores e juízes. É um sistema, orientado pelos EUA,
que age no interesse de um mercado específico, pois existem outras drogas
que não são pensadas como um problema, aquelas que estão nas indústrias farmacêuticas, de origem europeia".
Para ele, "a guerra às drogas serve para criminalizar o latino-americano".