Operação militar especial russa

O que muda no xadrez geopolítico com a integração de Lugansk, Donetsk, Zaporozhie e Kherson à Rússia

Com a integração das repúblicas populares de Donetsk (RPD) e Lugansk (RPL) e das regiões de Kherson e Zaporozhie, o mundo está com os olhos voltados para o equilíbrio do poder na Europa, para a defesa territorial da Rússia e para a operação militar especial. A Sputnik Brasil falou com especialistas para avaliar os impactos das adesões.
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Logo em seguida à assinatura do presidente da Rússia, Vladimir Putin, dos acordos de adesão dos quatro territórios, o presidente ucraniano, Vladimir Zelensky, anunciou a formalização de um pedido para aceleração do ingresso de seu país à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
A aliança militar, por sua vez, descartou o ingresso da Ucrânia, mas afirmou que vai prosseguir enviando armas e suprimentos bélicos para o vizinho da Federação da Rússia.
Então o que de fato muda no tabuleiro político global?
Para Robinson Farinazzo, especialista militar e oficial da reserva da Marinha do Brasil, ao integrar os territórios à Rússia, Putin mexeu bastante no equilíbrio internacional e se vale de precedentes anteriores praticados pelo próprio Ocidente.

"Putin está utilizando o precedente de Kosovo, a mesma coisa que a OTAN fez há alguns anos com relação aos kosovares. [Trata-se] do mesmo tipo de raciocínio, a mesma lógica e o mesmo direito o que ele está empregando nesses novos territórios. Vai ficar muito difícil combater, porque todas as vezes há o precedente de que isso foi feito no Kosovo. Se começarem a bater muito nessa situação de Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporozhie, ele também pode alegar o seguinte: Israel está ocupando ilegalmente as colinas de Golã há mais de 50 anos e os EUA não falam nada. E também a Cisjordânia. Há vários casos. Tem também Guantánamo, que é uma presença americana que, à luz do direito, fica muito difícil de comprovar", avaliou, em entrevista à Sputnik Brasil.

Operação militar especial russa
Leia na íntegra discurso de Putin sobre adesão de antigos territórios ucranianos à Rússia
A grande questão na Europa, em sua percepção, é a situação da Alemanha, que é um nó central dentro da União Europeia (UE).

"Se a Alemanha quebrar em virtude do encarecimento da energia (porque ela não tem mais o gás barato da Rússia), isso vai impactar em toda a União Europeia. O motor econômico da UE é a Alemanha, e com ela em uma situação difícil, vai ficar muito complicado para os outros países se sustentarem economicamente. O cenário ainda está muito nebuloso, mas eu acredito que uma grande crise vai assolar a Europa. Não sabemos quais serão as consequências dela", apontou o oficial da reserva da Marinha.

Embora considere muito precipitado entender o que muda em termos geopolíticos globais, o historiador Rodrigo Ianhez demonstrou preocupação com o pedido de aceleração da adesão da Ucrânia à OTAN.

"Não acredito que a adesão formal das regiões à Rússia mude os rumos do conflito, mas há de se observar essa questão, que agora parte do território russo, considerando esses ataques. Agora, [em caso de] um ataque à Federação da Rússia, diretamente, talvez haja uma escalada. E isso é preocupante", afirmou, acrescentando que não cabe à OTAN negociar a paz; é a Ucrânia que tem que entrar na mesa de negociações. "E ela não está disposta. Esse anúncio do Zelensky deixou claro que ele não está observando a possibilidade de uma negociação mais séria", opinou, em entrevista à Sputnik Brasil.

Farinazzo entra em consonância com o colega: costurar negociações com a Rússia é difícil, porque quem está mandando efetivamente no conflito são Washington e Londres.
Nem EUA, tampouco Reino Unido querem paz de forma alguma, "ou pelo menos a paz que eles entendam que lhes seja desfavorável", apontou.
"Não sei se os demais países conseguem se descolar do tacão anglo-americano."
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Defesa territorial da Rússia

Do ponto de vista estratégico, Donbass foi uma região importante para a industrialização da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), explicou Rodrigo Ianhez, por ser de mineração de carvão, principalmente, mas também importante nos primeiros planos quinquenais da URSS.
Foi uma região muito industrializada, muito urbanizada e com uma grande população.
Outro elemento que ele apontou é o fato de que a Crimeia, apesar da proteção de Moscou, seguia com problemas de abastecimento porque a Rússia não controlava a parte continental. Os ucranianos haviam bloqueado o reservatório de água que abastecia a península.

"De forma que essas regiões [integradas nesta sexta-feira (30)] dão à Rússia uma possibilidade de controlar mais esse território. Mas não é uma situação resolvida. Ainda há conflitos na região e o desenvolvimento desses referendos [feitos com as populações dos territórios, que aprovaram as adesões]. A partir do momento que a Rússia considera esses territórios seus, cada ofensiva pode levar a uma escalada preocupante do conflito", observou.

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Robinson Farinazzo, por sua vez, aponta que Putin ganhou profundidade.
Isso porque, a partir do momento em que ele ganha a confiança dessas populações e coloca o Exército ali, a Rússia ganha uma "zona-tampão" que protege as cidades fronteiriças.

"Estrategicamente é muito importante. Essa região tem a [mesma] importância que as colinas de Golã têm para Israel. Ou seja, você cria um cordão de defesa para os russos. Isso é muito importante, historicamente, e sempre foi, além do fato de que é uma das regiões mais ricas da Ucrânia", avaliou.

O especialista militar acredita que a adesão dos quatro territórios pode mudar os rumos do conflito.
Como a partir de agora os territórios são parte da Rússia, qualquer ataque da Ucrânia pode ser considerado para os russos uma agressão ao seu próprio país.
Ele avalia que a Rússia tem condições de pesar a mão e dar toda a resposta que achar cabível. O conflito pode entrar em uma nova fase — não só por isso, mas também pelo fato de que as reservas russas devem começar a mexer esse jogo.

"A Rússia estava empregando muito poucas tropas ali, com resultados militares muito lentos. Se essas reservas entrarem com tudo agora, a tendência é que o quadro se altere. À medida que começa o inverno europeu, dentro de uns dois meses, a quantidade de condicionantes nesse conflito é muito grande e a gente não sabe que rumos ele pode tomar", opinou.

Farinazzo prossegue dizendo que a história dos danos encontrados nos gasodutos Nord Stream 1 e Nord Stream 2 está muito mal contada e que pode haver uma indignação muito grande, principalmente na Alemanha, porque isso vai ter impactos no parque industrial alemão.
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Ele também divide as visões ocidentais da OTAN, dizendo que europeus a enxergam como uma aliança antirrussa.

"Não dizem isso especificamente, mas é fácil de entender. O problema é que os EUA não veem da mesma forma. Os EUA encaram a OTAN como uma possibilidade de contenção da China. Eles olham muito mais para a Ásia e para o Pacífico do que para os próprios interesses europeus. Acontece que uma OTAN nesse desenho que os EUA têm em mente teria um custo muito alto, que não se sabe se os países da Europa estão dispostos a pagar", avaliou.

Tudo isso que está ocorrendo mostra que a Rússia não está blefando e que ela estabeleceu uma linha vermelha que não deve ser cruzada por Kiev ou por seus aliados ocidentais, diz o oficial da reserva da Marinha.
Farinazzo lembra que a OTAN começou, em 1949, com 12 países. Hoje a aliança tem 30, sendo que a maior parte da expansão dela foi em direção às ex-repúblicas soviéticas, depois dos anos 1990.

"Isso incomodou muito a Rússia, que tem uma preocupação atávica com as invasões que vêm do Oeste (diga-se de passagem, Napoleão, Hitler etc.). Eles olham isso como mais uma invasão, mais uma tentativa de agressão. É preciso olhar o seguinte: à medida que a OTAN se expandiu para o leste, o tempo de resposta das defesas russas, das defesas antimísseis nucleares da Rússia diminuiu bastante. Aumentou a possibilidade de um ataque nuclear bem-sucedido contra a Rússia. Mas muita gente nas sociedades da Europa Ocidental vai pensar, efetivamente, se quer um confronto que pode ser evitado contra a Rússia", concluiu.

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