Eleições 2022

Putin não tentou interferir nas eleições do Brasil; como é a relação da Rússia com Lula e Bolsonaro?

A mentira começou a circular em redes sociais de vídeo no fim da primeira semana de outubro. Era uma reprodução de tela de um portal de notícias com título adulterado afirmando falsamente que o presidente da Rússia, Vladimir Putin, suspenderia o comércio de fertilizantes caso o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fosse eleito.
Sputnik
A falsificação começou pela plataforma Kwai, migrou para o TikTok e rodou pelas demais redes sociais e por aplicativos de mensagem durante as últimas semanas.
Sob o título apócrifo "Putin diz que pode paralisar fornecimento de fertilizantes para o Brasil caso Lula seja eleito", a notícia falsa teria sido supostamente publicada no site G1, que desmentiu a trapaça na última sexta-feira (14).
Reprodução de tela com notícia falsa sobre Vladimir Putin divulgada no contexto das eleições brasileiras de 2022
A verdade é que Putin não tentou interferir nas eleições presidenciais do Brasil.
A Rússia adota uma postura de neutralidade em relação à disputa democrática brasileira, atualmente polarizada em torno do ex-presidente Lula e do atual chefe do Executivo, Jair Bolsonaro. Moscou, de fato, tem e pretende manter uma boa relação com qualquer presidenciável que for governar o Brasil a partir de 2023.
Ambos os candidatos, por sua vez, sempre valorizaram a relação com a Rússia e devem manter — e talvez fortalecer — os elos com o Kremlin.

"A Rússia respeita qualquer escolha do povo brasileiro, mas as relações dependem dos interesses dos países. Eu diria que os dois candidatos tiveram boas relações com a Rússia e com o presidente russo. Durante o governo de Lula, tivemos a parceria estratégica, o BRICS [grupo que agrega os dois países, Índia, China e África do Sul]. Depois da entrada de Bolsonaro, ao contrário do que muitos especialistas acharam, nós conseguimos manter relações muito construtivas", comentou o senador russo Andrei Klimov, vice-presidente do Comitê de Relações Exteriores do Conselho da Federação da Rússia (câmara alta do Parlamento russo), em entrevista coletiva cedida a jornalistas brasileiros no mês de agosto.

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De fato, a Rússia sempre teve uma boa relação com todos os governos brasileiros, afirma à Sputnik Brasil Rodrigo Ianhez, historiador brasileiro radicado em Moscou.
Ele explica que, desde o governo Lula, há um aprofundamento dos laços da Rússia com o Brasil, que não foi interrompido.

"Nem mesmo diante do impeachment da [ex-presidente] Dilma [Rousseff] houve essa interrupção. No governo do ex-presidente [Michel] Temer, a relação permaneceu bastante boa. Era uma relação boa, mas também não era uma relação muito profunda. Há trocas comerciais: no passado, o Brasil vendia mais carne, mais produtos agrícolas à Rússia. Hoje, em alguns mercados, a Rússia até concorre com o Brasil, por exemplo na Ásia Central. Mas, de toda forma, é uma relação bastante boa dentro das possibilidades e dos limites geopolíticos de cada um", avaliou.

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Para Angelo Segrillo, professor de história da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), o governo Lula tem o mérito de ter aprofundado as relações com a Rússia.
Ele nota que o governo Fernando Henrique Cardoso estabeleceu as bases para um possível desenvolvimento futuro dessas relações, a partir da criação das câmaras de cooperação bilateral.

"No governo Lula, houve um aprofundamento através do uso desses instrumentos básicos e também do aprofundamento pela atuação mais contundente do governo Lula no BRICS. O BRICS impulsionou muito essa relação", apontou Segrillo.

Ele lembra que inclusive houve a formação de uma aliança estratégica entre Rússia e Brasil no governo Lula.

"Houve diversas atividades, inclusive os acordos para que um astronauta brasileiro [Marcos Pontes, aliado de Bolsonaro e eleito senador no primeiro turno] fosse ao espaço, acordos na área militar e em várias indústrias estratégicas. No comércio, estabeleceu-se uma meta de se chegar a US$ 10 bilhões (que, na verdade, nunca foi atingida, devido a diversas crises). Mas, no governo Lula, foi uma das épocas em que houve a tentativa de realmente se chegar a esse ideal. E, realmente, o comércio bilateral se posicionou muito no governo Lula."

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Rodrigo Ianhez concorda com o colega e aponta que a Rússia sempre teve um comprometimento muito grande com o BRICS.

"A Rússia sempre foi um dos países mais entusiasmados dentro do bloco. Foi no governo Lula que tivemos esse impulso inicial para o BRICS", disse.

Angelo Segrillo acrescenta que o governo Bolsonaro começou relativamente frio em relação à Rússia. Isso porque, no geral, a atual gestão começou tendo um caráter muito ideológico.
Por muitas vezes, a Rússia era associada ainda ao seu passado comunista no início do atual governo brasileiro, o que atrapalhava um pouco o aprofundamento das relações, ainda mais com a tendência inicial de alinhamento aos Estados Unidos.
Aos poucos, prossegue o professor da USP, duas coisas começaram a aproximar os governos dos dois países: a agenda de costumes, "dos valores de família", e a posição adotada pelo Brasil no contexto do conflito na Ucrânia, que inclusive garantiu o fluxo de produtos importantes fornecidos pela Rússia ao país, como fertilizantes e combustíveis.

"São fatores que têm aproximado o governo Bolsonaro da Rússia", analisou.

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Rodrigo Ianhez destaca a importância dessa relação comercial ao comentar a veiculação da notícia falsa sobre as relações entre Rússia e Brasil.

"Não é à toa que essa notícia falsa se deu nesse âmbito da venda de fertilizantes, porque o setor rural brasileiro depende muito dos fertilizantes da Rússia. A Rússia, como maior produtora de fertilizantes do mundo, é um parceiro natural do Brasil, cujo setor agrícola é imenso", ponderou.

O historiador lembra que a visita de Bolsonaro no início do ano à Rússia foi justamente para discutir a questão dos fertilizantes.

"Na época, também houve notícias falsas e distorções de notícias no sentido de que o Bolsonaro teria ido para discutir questões em relação à Rússia e à Ucrânia. É evidente que não. A natureza da relação com o Brasil não é essa de que a Rússia se aconselhe com o Brasil em relação a essas questões geopolíticas maiores. É uma relação que se baseia principalmente em uma parceria comercial", indicou.

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Afinal, como se dará a relação do novo governo do Brasil com a Rússia?

Lula foi uma das primeiras lideranças mundiais a criticar o presidente da Ucrânia, Vladimir Zelensky, durante uma entrevista cedida à revista Time, de cuja edição estampou a capa.
Bolsonaro, por sua vez, não deu opiniões diretas sobre Zelensky. Disse, no entanto, que não poderia trazer um problema externo para o Brasil sem poder solucioná-lo.
Tal como seu adversário, se eleito, Lula já deu alguns direcionamentos de que o Brasil não vai se posicionar a favor ou contra a Rússia em relação à Ucrânia, nota Rodrigo Ianhez, destacando a "posição histórica do Brasil de mediação de conflitos".
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Já Bolsonaro, em caso de reeleição, deve manter o contato diplomático no mesmo nível em que segue atualmente: uma posição de neutralidade, evitando a adoção de sanções, segundo Angelo Segrillo.
Com base nas gestões anteriores, porém, ele pondera que Lula, no caso de conquista de um terceiro mandato, poderia conduzir as relações de forma diferente.
"Acredito que Lula vai tentar retomar os contatos de alto nível com a Rússia. Acho que manterá, de certa forma, uma neutralidade no conflito, mas uma neutralidade mais ativa. O governo Lula vai tentar, talvez, até fazer uma mediação no conflito entre Rússia e Ucrânia", apostou.
De maneira geral, para o professor da USP, não é possível dizer qual governo seria mais ou menos favorável à Rússia.

"Os dois têm uma certa abertura em relação à Rússia, de diferentes maneiras. Acredito que, tanto com Lula quanto com Bolsonaro, Putin e a Rússia terão diálogo."

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Nesta quinta-feira (20), o embaixador da Rússia na Organização das Nações Unidas (ONU), Gennady Gatilov, definiu como "excelente", em conversa com repórteres, a relação entre Brasil e Rússia.
Gatilov sublinhou que, independentemente de quem vencer o segundo turno da eleição brasileira, na próxima semana, a conexão entre Brasília e Moscou continuará e poderá até ser ampliada.
"Independentemente do resultado [do pleito], espero que a relação continue a avançar. Até mais, talvez", disse o embaixador.
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