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Política de armas de Bolsonaro e Lula: o que muda na transição de governo?

A Sputnik Brasil explica como funciona a indústria das armas no Brasil e o que pode mudar com a troca de governo, com a saída do presidente Jair Bolsonaro — notório defensor de políticas armamentistas — e a chegada ao poder de Luiz Inácio Lula da Silva — que levanta a bandeira do desarmamento.
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A indústria das armas no Brasil ganhou fôlego no governo Bolsonaro com a flexibilização do porte e da posse de armas. Desde que assumiu a Presidência, Jair Bolsonaro (PL) editou mais de 40 decretos que visavam facilitar o acesso da população civil a armamentos.
Segundo dados oficiais do Exército, divulgados em outubro pelo portal G1, entre 2003 e 2018 foram concedidos 171.431 registros de Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador (CAC). Já de 2019 para cá, o governo autorizou a licença para 549.831 pessoas no segmento.
Com relação às armas registradas por CACs, a quantidade saltou de 123.055, no período de 2015 a 2018, para 680.808 a partir de 2019.
Para o gerente do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani, um dos efeitos da política armamentista é o aumento do desvio de armas e munições legalizadas por criminosos. Um levantamento realizado pela revista Veja com dados do Exército mostrou que a média mensal de armas roubadas ou furtadas de CACs cresceu de 31,8 em 2015 para 112,3 neste ano.

"Ainda que o governo eleito reverta parte do caos criado por Bolsonaro e pelo Exército e feche algumas graves brechas criadas para o armamento do crime organizado, teremos efeitos duradouros", lamenta Langeani.

Depósito de armas apreendidas na divisão de produtos controlados do Departamento de Polícia de Proteção à Cidadania (DPPC), em São Paulo. Foto de arquivo
Apenas na mão de civis, ele estima que atualmente haja mais de 1,2 milhão de armas, que são na média mais potentes do que no período anterior aos decretos de flexibilização de porte e posse. E como, ano após ano, o desvio de armas para o mercado ilegal é crescente, criminosos também estão modernizando seus arsenais.
Segundo um relatório do Instituto Sou da Paz, "na prática, o crime está substituindo armas mais antigas e de calibre mais baixo por armas mais novas e mais potentes".
A ONG frisa que as mudanças ocorreram "não só em termos de diâmetro de calibre e energia de expulsão do projétil, mas também com relação à capacidade de munição, facilidade de recarregamento e disparos mais ágeis".

"Isso já está gerando pressão em crimes do cidadão comum, como homicídios, feminicídios e suicídios, mas também mudando a cara do mercado ilegal, já que várias dessas armas são roubadas e furtadas e vão parar na mão do crime", disse o gerente do instituto à Sputnik Brasil.

Coordenador de Justiça na transição de governo, o senador eleito Flávio Dino (PSB-MA) já afirmou que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deve revogar os decretos de armas assinados por Bolsonaro.
Além disso, ele esclareceu que o governo não vai atuar para fechar clubes de tiros, mas deve combater fraudes envolvendo os CACs. Ele é cotado para ser ministro da Justiça ou da Segurança Pública na gestão do petista.
"Os clubes [de tiro] podem existir, mas uma pessoa pode fraudar o porte de trânsito e dizer que está indo ao clube, mas na verdade está indo ao bar, armado e com munição? Não. Isso não está na lei", disse Dino, em entrevista ao programa Canal Livre, da TV Band, no último domingo (27).
Então ex-presidente, Lula (ao centro) ao lado de Flávio Dino (PSB), então governador do Maranhão, e de Manuela d'Ávila (PCdoB-RS), então deputada estadual, durante o Congresso Nacional do PCdoB, em Brasília (DF). Foto de arquivo
O especialista em defesa Danilo Bragança, pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Política Externa Brasileira (LEPEB) da Universidade Federal Fluminense (UFF), afirma que o governo eleito de Lula herdará muitos "gargalos" da gestão Bolsonaro no que diz respeito a políticas públicas de segurança.
Um deles é justamente a grande dispersão de armas circulando no Brasil, que, segundo o especialista, provoca o aumento de casos de diversas ocorrências com arma de fogo, entre elas casos de legítima defesa, de ataques de natureza racista e sexista, violência na escola, e delitos de outras naturezas.
Para começar, ele recomenda a criação de um ministério da Segurança Pública, com o objetivo de integrar os diversos braços das polícias brasileiras e promover uma cooperação interestadual.

"O crime organizado no Brasil tomou uma condução mais interiorizada. Como não há coordenação entre polícias estaduais, civis ou militares, polícias federais, guardas, Polícia Rodoviária Federal [PRF] e Polícia Federal [PF], essa descoordenação geral causa impacto na produção de políticas públicas para a mitigação da violência", apontou Bragança à Sputnik Brasil.

O presidente da República Jair Bolsonaro durante ato de entrega de viaturas e de armamentos à PRF, em 20 de fevereiro de 2020. Foto de arquivo
Segundo ele, a falta de coordenação e de entendimento da questão pelas Forças Armadas é "totalmente desproporcional ao que se gasta" no segmento.
"Temos um enorme problema, porque eles não sabem a quantidade de armas circulando no Brasil. Se não sabem e não se tem o registro, como fazemos para controlar? Como fazemos para descontruir uma sociedade que se armou muito rapidamente em quatro anos?", indagou o especialista.
De acordo com dados do Instituto Sou da Paz, a cada dez cápsulas de balas circulando no país, apenas duas têm informações sobre seu lote de origem. Ou seja, a maior parte das munições não conta com qualquer tipo de identificação sobre quem a comprou ou de onde veio.

"A numeração de munição é algo absolutamente plausível. Estamos lidando com câmera em uniforme de policial e uma série de outras tentativas de reduzir a letalidade e a violência policial, mas, na prática, podíamos estar em outro ponto do debate. Não estamos porque as Forças Armadas não fazem o que precisam fazer por leniência, conivência ou absoluta incompetência", critica.

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Mudanças do STF nas regras de CACs

Em setembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a restrição dos efeitos de decretos de Bolsonaro sobre a compra e a posse de armas de fogo e de munição.
Por nove a dois — apenas Kassio Nunes Marques e André Mendonça votaram contra —, a Corte confirmou decisão do ministro Edson Fachin estabelecendo que a posse de armamentos só pode ser autorizada às pessoas que demonstrem concretamente a efetiva necessidade, por razões profissionais ou pessoais.
Além disso, o STF decidiu que a aquisição de armas de fogo de uso restrito só pode ser permitida no interesse da própria segurança pública ou da defesa nacional, e não em razão do interesse pessoal.
Estátua simbolizando a Justiça em frente à sede do STF, na praça dos Três Poderes, em Brasília. Foto de arquivo
Outra medida relevante decretada pelos ministros é que a quantidade de munição a ser adquirida tem como limite apenas o necessário à segurança dos cidadãos, "de forma diligente e proporcional".
Segundo Danilo Bragança, o Estatuto do Desarmamento, de 2003, havia sido "um grande avanço da população". O pesquisador afirma que "a sociedade democrática efetivamente se constrói desarmada".

"Quando se introduz o elemento da arma nesta relação de poder, cria-se um descompasso muito grande, em um país com problema de sociabilidade agudo. Os CACs vão ter que começar novamente a serem limitados com relação aos seus clubes de tiro, ao trânsito com armas", avalia.

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Brasil tem 'enorme rede internacional de compradores' de armas

Principal fabricante de armas do Brasil, a Taurus exporta seus produtos para mais de 100 países, incluindo os Estados Unidos, que têm o maior mercado mundial no segmento.
A empresa é a maior vendedora de armas leves do mundo, sendo líder mundial na fabricação de revólveres. Só o mercado estadunidense responde por 70% da receita da companhia, que em 2021 foi de R$ 2,7 bilhões. Já o lucro líquido da empresa — descontando-se as despesas — atingiu R$ 1,3 bilhão, um aumento de 323% em relação a 2018 (R$ 307 milhões).
"O Brasil é muito forte na venda de armas e munições para os mercados civil, policial e, em menor escala, militar. Armas de porte como revólveres e pistolas são o carro-chefe, mas há expansão para armas longas, como carabinas e fuzis", indica Bruno Langeani, do Instituto Sou da Paz. "A indústria tem um grande poder financeiro, que produz um lobby forte para desregulamentar regras e facilitar seus lucros, ainda que a custa de mais mortes no Brasil."
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Segundo Bragança, da UFF, além de armas leves, o país produz muitos artefatos, como bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo e armas táticas, usadas em tumultos e aglomerações de pessoas.

"O Brasil tem menos acesso à indústria de armamento pesado, que normalmente é controlado por países como a Rússia e os EUA, mas tem um papel muito importante na produção de armamento tático, que exporta para países como Israel e Líbano", afirma o especialista.

De acordo com o especialista, as exportações são parte importante da indústria armamentista. Ele aponta que há "uma enorme rede internacional de compradores" do segmento brasileiro, direcionada mais à segurança pública do que às forças armadas tradicionais.
Bragança acredita que a fatia da indústria armamentista brasileira no exterior poderia até ser maior se o país valorizasse sua relação com países vizinhos e investisse na formação de uma base industrial de defesa para abrir portas nos mercados regionais.
Segundo ele, a "desconstrução da integração sul-americana" impactou a base industrial de defesa comum, a partir do "esvaziamento" do Mercado Comum do Sul (Mercosul) e da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), após o fim do governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT).

"Durante os governos Lula, os países sul-americanos foram prioridade na construção da nossa política externa, na maneira pela qual o Brasil se insere no cenário internacional. Isto já está colocado: a reconstrução dessas plataformas de integração sul-americana a partir da nossa vizinhança direta, da América do Sul", indicou Bragança.

De acordo com o especialista, com a retomada da política de integração nacional, o governo Lula poderá contribuir para alavancar as exportações do setor. Ele explica que a política de desarmamento nacional da população civil não impedirá o novo governo de investir no segmento para exportação.

"É um setor estratégico, que envolve tecnologia, pesquisa e desenvolvimento, universidades, mão de obra qualificada, investimento internacional e joint-ventures com grandes empresas internacionais. Pode haver um alavancamento da indústria de defesa brasileira a partir da política de defesa comum sul-americana. Até porque agora o momento político sul-americano é outro", afirmou.

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