Não haverá paz na Ucrânia enquanto Ocidente continuar abastecendo Kiev com armas, dizem analistas
19:30, 8 de dezembro 2022
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas destacam que a estratégia ocidental de fornecer armas a Kiev está gerando desabastecimento nos arsenais europeus e beneficiando apenas empresas produtoras de armas, em especial dos Estados Unidos.
SputnikO envio de armamento é uma das principais estratégias adotadas pelos EUA e seus aliados europeus para apoiar a Ucrânia no conflito com a Rússia. Desde que Moscou iniciou sua operação militar na Ucrânia, a ajuda militar enviada a Kiev pela Europa já ultrapassa 8 bilhões de euros (aproximadamente R$ 43,9 bilhões). Em paralelo, empresas americanas elevaram a produção de armas para manter o fornecimento à Ucrânia.
Porém esse envio constante e desenfreado de armamentos
vem causando preocupação entre países-membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), referente aos efeitos adversos dessa estratégia. O maior temor é o
desabastecimento dos arsenais europeus.
Para entender que impactos a política de envio de armas pode ter sobre os EUA e seus aliados e que benefícios ela trouxe até o momento, a Sputnik Brasil conversou com Isabela Gama, especialista em segurança e teoria das relações internacionais e BRICS e pesquisadora pós-doutoranda da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), e Valdir Bezerra, mestre em relações internacionais pela Universidade Estatal de São Petersburgo e membro do Grupo de Estudos sobre Ásia (Geasia) do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (Nupri-USP) e do Grupo de Estudos sobre os BRICS (GEBRICS), também da USP.
24 de novembro 2022, 21:35
Para Valdir Bezerra,
o desabastecimento dos arsenais é um risco real,
"capaz de causar uma crise reversa nos estoques da OTAN".
"Ambos os lados do conflito têm queimado armamento e munição a um ritmo poucas vezes visto, e a competição por parte do Ocidente em manter os arsenais ucranianos em dia tem trazido altos custos para países como Polônia e os Estados Bálticos, por exemplo, além de um significativo estresse econômico para países mais ricos, como França e Alemanha", diz Bezerra.
Isabela Gama, por sua vez, destaca que o conflito está drenando os arsenais de muitos Estados há vários meses, uma vez que vem se prolongando. Porém ela destaca que há uma suspeita de que a Europa não está enviando a Kiev suas armas mais modernas. Ela lembra que, há alguns meses, a Alemanha solicitou ao Brasil blindados para enviar à Ucrânia.
Segundo ela, causa estranheza que o pedido não tenha sido feito à Romênia, por exemplo, "que logisticamente faria muito mais sentido". "A questão é que são blindados antigos. Naquele momento, a Alemanha já estava tendo problema em realizar esses envios de armamentos à Ucrânia como havia prometido", diz a especialista.
Ela acrescenta que "os membros da OTAN estão enviando a Kiev armas que não estão mais em uso em países da aliança".
"Estão enviando basicamente o que é sobressalente ou não está mais em uso, como, por exemplo, esses blindados que pediram ao Brasil. Foram blindados dos quais o Brasil estava tentando se livrar já há muito tempo. A OTAN não usa mais esses blindados."
16 de novembro 2022, 11:43
Questionado sobre como o desabastecimento pode afetar a segurança da Europa, Bezerra diz que o continente pode se tornar mais subserviente,
sobretudo em relação aos EUA.
"Os países economicamente vulneráveis da Europa terão dificuldades em repor rapidamente seus arsenais e, diante disso, dependerão ainda mais dos grandes centros decisórios, como Berlim e Paris, dentro do continente e fora dele, sobretudo dos Estados Unidos, para sentirem-se seguros. Com isso, o que podemos dizer é que a posição de muitos Estados na União Europeia será caracterizada pelo aumento de sua condição de subserviência a esses grandes centros."
Ele acrescenta que há "considerável preocupação em algumas audiências no Ocidente a respeito da destinação não somente de armas, como também dos aportes financeiros sendo enviados à Ucrânia no decorrer do conflito".
"Como os controles locais padecem de imperfeições, infelizmente o risco de que tanto armas quanto capital financeiro [...] [sejam] desviados para mãos erradas não pode ser descartado."
Por outro lado, Isabela Gama destaca que a política também trouxe benefícios, não para os civis ou envolvidos no confronto, mas para empresas produtoras de armas, que lucram com o conflito.
"Conflitos, de uma forma geral, são devastadores para quem está em campo, para quem está lutando, para os civis. Mas as empresas lucram demais, não só com produção de armamentos e munição para infraestrutura de conflitos de uma forma geral, afinal de contas em um front de batalha é necessária infraestrutura para soldados, como campos para que eles durmam, alimentação, equipamentos, uniformes, capacetes e afins. Tudo isso gera um retorno muito grande para empresas privadas."
Bezerra compartilha da opinião e cita, em especial, as empresas americanas Raytheon e Lockheed Martin.
"Basta atentarmos para o aumento do preço das ações dessas empresas após a eclosão do conflito e o número de contratos firmados com o governo. Para o complexo militar industrial americano, em suma, a continuação das hostilidades entre Rússia e Ucrânia é um cenário que favorece seus interesses", diz o especialista.
27 de novembro 2022, 15:50
Por fim, nenhum dos especialistas diz acreditar que há margem no momento para iniciar negociações de paz.
Valdir Bezerra afirma que a sugestão dada pelo presidente americano, Joe Biden, de que a Rússia encerrasse sua operação, não é aceitável para Moscou e destaca que "Vladimir Zelensky anunciou que não iria se dispor a negociar com [Vladimir] Putin [presidente russo] uma saída para o conflito".
"A Rússia, por sua vez, dificilmente vai satisfazer-se com uma solução que não inclua o reconhecimento dos territórios recentemente adicionados, além dos objetivos que foram declarados em fevereiro, que envolvem, entre outras coisas, a desmilitarização da Ucrânia e sua neutralidade frente à OTAN", conclui Bezerra.
Já Isabela Gama diz acreditar que o envio de armas está prolongando o conflito e que somente haverá uma chance de negociação de paz quando a OTAN cessar o suprimento de armas a Kiev.
"Enquanto os outros Estados continuarem se envolvendo e dizendo para o restante do mundo que a Rússia precisa ser derrotada com armas, esse conflito vai escalar, e quem sofre mais são os civis. Então, de certa forma, é bom que esteja havendo um desabastecimento de armamentos da Europa. Talvez eles parem de enviar tantos armamentos, sob o pretexto de que isso é para proteção da Ucrânia. A Ucrânia não está melhorando sua situação com mais armas. A única forma de melhorar isso é parar o envio de armamentos e tentar negociar algum acordo para cessar esse conflito", conclui a especialista.