Panorama internacional

Por que governos europeus culpam a Rússia por suas próprias decisões que levaram à crise energética?

Em meio ao recrudescimento da crise de energia na Europa, governantes de países do continente vêm imputando à Rússia a culpa de todos os males da recessão econômica — negligenciando, contudo, que foram eles mesmos que impuseram pesadas sanções a Moscou, inclusive sobre insumos energéticos dos quais são altamente dependentes.
Sputnik
Sem reconhecer a responsabilidade do seu próprio governo pela crise instalada na Alemanha e na Europa, Robert Habeck, ministro alemão da Economia, acusou a Rússia, recentemente, de "fechar a torneira do gás", atribuindo a Moscou a culpa pelas dificuldades econômicas alemãs.
No bojo dessa afirmação, Heinz-Christian Strache, ex-vice-chanceler da Áustria, acusou o governo alemão de mentir ao povo diante da escassez de energia. "Porque eles teriam que admitir que eles próprios são responsáveis pelo resultado negativo de suas ações", criticou.
O agravamento da crise energética também é sentido no Reino Unido: hoje (24) a National Grid, operadora de rede elétrica, prepara a ativação das antigas usinas movidas a carvão no país. O índice de preços ao consumidor (IPC) da inflação está atualmente em 10,7% no Reino Unido, em meio à crise energética provocada pelas sanções ocidentais à Rússia, enquanto o índice de preços no varejo (IPV) é de 16,1%.
O podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, conversou com Carolina Bernardes Enham, professora e coordenadora do curso de pós-graduação em projetos internacionais do Instituto de Educação Continuada (IEC) da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) e cônsul honorária da Rússia em Belo Horizonte, para entender o motivo pelo qual os países europeus jogam a culpa para Moscou por medidas que eles próprios adotaram. A conversa vai ao ar na próxima quarta-feira (25).
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Segundo Enham, já se esperava essa retórica de culpar a Rússia, até porque "sempre é muito mais fácil atribuir culpa a alguém e terceirizar os problemas".

"Não é novidade nenhuma no cenário político ao longo da história e do desenvolvimento dos países, mesmo sendo reflexo das decisões geopolíticas desses países. Isso nada mais é do que consequência de tomadas de decisões equivocadas. É possível que essa declaração seja seguida por outros países europeus para justificar o caos que eles estão vivendo neste momento. Não há melhor palavra para se colocar do que 'caos'."

Ela explica que desde 2014, quando eclodiu o conflito na região de Donbass, então na Ucrânia, a situação já era delicada e sensível.
A Europa, porém, não deu a devida importância ao assunto.
A Rússia, por sua vez, sempre se preocupou e denunciou essa questão ao mundo, seja por meio da Organização das Nações Unidas (ONU), seja por meio dos Acordos de Minsk, que estabeleceram um cessar-fogo dos bombardeios contra a região de Donbass, o que não foi cumprido pela Ucrânia.
Quem explorou a questão foram os Estados Unidos, que, independentemente da liderança presidencial, precisam estar atrelados a algum tipo de conflito, tanto por questões políticas de hegemonia quanto por razões econômicas.

"Era um caldeirão de pólvora para o qual a Europa fazia certa vista grossa e fingia não estar acontecendo. Na verdade esperavam que a Rússia conseguisse resolver a situação com a Ucrânia diretamente e sem muita intervenção externa. O fato é que sabíamos que isso não ia acontecer, a partir do momento em que os Estados Unidos tinham grande interesse em fazer com que o conflito escalasse em vez de que se resolvesse. Porque estamos falando de uma guerra por procuração. Depois da saída desastrosa dos EUA do Afeganistão, os EUA precisavam se reorganizar de alguma maneira, pois sempre precisam estar em um conflito em andamento. Isso tem a ver com as questões econômicas e com a indústria bélica muito forte, que responde por quase um terço do PIB norte-americano. É muita ingenuidade não pensar que esse conflito é lucrativo para os EUA, porque é", afirma.

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Na visão da professora, faltou leitura política de médio e longo prazo por parte do continente europeu, algo que o tornou refém de uma situação sem que tivesse se preparado para ela.
Por não se preparar e por não compreender o xadrez geopolítico que se desenrolava e que essa questão da Ucrânia não iria se resolver por si só, a Europa não conseguiu mensurar a gravidade do que estava por acontecer, aponta Enham.
"Também não conseguiu fazer uma previsão de médio e longo prazo do que poderia acontecer no cenário geopolítico. Para a Rússia era ótimo que toda a Europa estivesse dependendo da geração de energia russa porque era um ganho político e econômico muito positivo. O que está por trás é que a Europa era dependente de energia russa e não atrelou isso à questão geopolítica [da região ucraniana]. As duas questões explicam e, neste momento, ficam mais evidentes."
A cônsul honorária da Rússia lembra que, devido a esse esforço muito grande para tentar conter a China para que se mantivesse a balança de poder de forma cômoda para o Ocidente, a Rússia cresceu e se solidificou em uma economia em ascensão, que acabou por colocar a Europa dependente da energia russa.

"Isso passou a incomodar os EUA e a economia ocidental e a mexer nessa balança (que, até então, era favorável aos EUA). Então quando a Rússia dá seu primeiro xeque-mate [em relação à questão energética], isso incomoda muito. Nada do que se vê nas relações internacionais é de ontem, são consequências [...] de outros resultados ao longo da história. Temos todo um contexto histórico de que a Rússia não é 'benquista' pelo Ocidente, e ela tem um rancor muito grande com relação a isso. Porque foram feitos esforços muito grandes na história da Rússia, desde o Império Russo, para que se estabelecesse esse laço e até mesmo essa 'incorporação' da Rússia à Europa e ao mundo ocidental. Mas ela sempre foi cortada, porque o medo dessa força, o medo do maior país do mundo e de sua expansão territorial sempre falou muito mais alto do que o lado da parceria, o lado da estratégia, o lado do desenvolvimento conjunto", analisa.

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Para Enham, a troca de acusações entre Áustria e Alemanha na questão da crise energética "demonstra o nível de desespero em que esses países estão".
Trata-se de uma tentativa de dizer à sua própria população que o que está ocorrendo não é por decisão errada dos governantes, e se usa disso em uma forma de se tirar a responsabilidade e jogá-la para o outro.
Os protestos espalhados em diversos países da Europa, no entanto, indicam que a população está tomando consciência de que "está comprando uma briga que não deveria ser dela".

"Vai doer no bolso do consumidor final a conta de energia, assim como vai doer ao consumidor final a falta de energia. A Europa está em uma situação muito complicada, e para a população isso é grave, porque é ela que sofre na pele. Até na Polônia, que historicamente tem uma relação difícil com a Rússia, centenas de pessoas foram protestar pedindo pela interrupção do apoio à Ucrânia. A população começa a entender que quanto maior o envio de armas à Ucrânia, maior a escalada do conflito. Porque se você arma uma das partes, você faz com que o conflito se estenda, e isso a Rússia tem dito o tempo todo. A população começa a entender que de fato essa conta não fecha. Por isso os protestos vêm acontecendo", reflete. "O que estamos vendo hoje é uma mudança da ordem mundial, uma chacoalhada no mundo com viés histórico importantíssimo que é resultado claro dos últimos séculos. Então estamos testemunhando um caldeirão com razões históricas, sobretudo econômicas e políticas, e que resultam nessa sobreposição de fatos e de acontecimentos que fará com que o mundo não seja mais como era há dez anos, e as mudanças virão em velocidade maior [que outras guerras em outros contextos mundiais diferentes], porque hoje tudo é imediato."

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