Panorama internacional

Protestos podem levar Peru a seguir o mesmo caminho do Chile e renovar Constituição?

Durante a cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), o presidente do Chile, Gabriel Boric, condenou a resposta repressiva do governo do Peru aos protestos que sacodem o país nos últimos meses. Entre as demandas dos atos está uma nova Constituição, pauta que mobiliza o povo chileno e tem Boric como um dos porta-vozes.
Sputnik
Especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil acreditam que o processo constituinte chileno é sim uma inspiração para a luta por uma nova Constituição para o Peru e, a depender dos desdobramentos dos atos, é possível que os peruanos consigam mudanças — totais ou parciais — na Carta Magna do país, elaborada durante o período ditatorial de Alberto Fujimori.

"É possível e óbvio que há, sim, influências [do processo constituinte do Chile]. Há uma inspiração por parte desses manifestantes — dos movimentos sociais que de forma geral querem uma nova Constituição no Peru — ao olharem para o caso chileno", avalia o cientista político Jefferson Nascimento, pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Apesar de enxergar que os peruanos "se espelham" no caso chileno, Nascimento frisa que "é preciso aprender com os erros que foram cometidos" no país vizinho. Apesar de os manifestantes conquistarem o direito de derrubar a Constituição da ditadura de Augusto Pinochet e de formar uma assembleia constituinte para criar uma nova Carta, o texto final acabou rejeitado em plebiscito, frustrando expectativas do governo Boric.
"É preciso que os atores políticos peruanos olhem para aquele processo como uma forma também de aprendizagem, não apenas de inspiração, mas de aprendizagem para que os erros não sejam cometidos novamente", sublinhou.
Manifestação em marcha do "Apruebo", em favor da aprovação da proposta de nova Constituição do Chile, em Santiago, em 13 de agosto de 2022
A declaração do presidente chileno em apoio aos manifestantes peruanos na CELAC parece reforçar esse espelho, conforme pôde ser visto nas redes sociais nas horas posteriores ao pronunciamento de Boric.

"Não podemos ficar indiferentes quando, hoje, em nossa irmã República do Peru, com o governo sob o comando de Dina Boluarte, pessoas que saem para marchar, para exigir o que consideram justo, acabam baleadas por quem deveria defendê-las. Mais de 50 pessoas perderam a vida, e isso deve nos chocar. [...] Hoje, com a mesma clareza com que sempre apoiamos os processos constitucionais em nossa região, assinalamos a necessidade urgente de uma mudança de rumo no Peru, porque o saldo deixado pelo caminho da repressão e da violência é inaceitável [...], e não tenho dúvidas de que aqui na CELAC essa vontade é esmagadoramente majoritária, democracia e direitos humanos", disse Boric.

O presidente chileno repudiou a entrada de policiais na Universidade Nacional Maior de São Marcos (UNMSM) para deter cerca de 150 manifestantes — elemento que é visto como uma violação da autonomia universitária — no último sábado (21). Boric disse que o episódio remonta aos tempos das ditaduras na região.
Para Rolando Alfonso Torres Prieto, membro do comitê executivo da Central Autônoma de Trabalhadores do Peru (CATP), "o governo Boluarte teve ações excessivas desde o início das mobilizações".

"As forças de ordem não estão preparadas nem têm os insumos necessários para enfrentar esse tipo de mobilizações. O último erro foi a entrada na UNMSM, onde atuaram sem medir o uso [...] da força. A ação das forças policiais deve ocorrer em todos os momentos com transparência, garantindo o devido processo legal, respeitando os direitos humanos de todos os participantes e em coordenação com o Ministério Público da Nação", apontou.

Para Nascimento, "há uma indignação cada vez maior conforme a pressão policial vai aumentando". Nesse sentido, aponta que a tendência é que Boluarte fique cada vez com menos apoio e termine presa. O especialista indica que a ex-companheira de chapa de Pedro Castillo opta por abandonar a agenda que os elegeu, do Peru Livre, e dialogar diretamente com a extrema-direita e com a direita conservadora.
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Torres Prieto enxerga a situação da mesma maneira e destaca que, além de fortalecer a indignação, esse processo de endurecimento da repressão faz com que as pautas dos protestos se tornem cada vez mais unificadas.
"Se o governo continuar agindo torpemente na repressão aos manifestantes, a população vai acabar se unindo e pressionar para que as mudanças sejam feitas. A forma como essas mobilizações se desenvolverem, se haverá violência excessiva ou danos ao patrimônio privado e público, será decisiva para obter o apoio da população", avalia.
Peruanos carregam caixões de vítimas da repressão com mensagens contra a presidente Dina Boluarte. Juliaca, 11 de janeiro de 2023
O pesquisador da UERJ destaca que as diferenças sociais, raciais e geográficas do Peru afetam diretamente as reivindicações. Na última semana, Boluarte deu uma declaração que evidenciou as diferenças do centro do poder, Lima, para o resto do país. "Puno não é o Peru", disse a mandatária em discurso em que buscou classificar os manifestantes de terroristas. A província de Puno, uma das com maior presença indígena do país, é a que registra o maior número de mortes por repressão policial.
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Para Nascimento, a unificação das pautas locais em uma pauta nacional é um fenômeno novo na política peruana, que vem se fortalecendo desde 2020, quando a população foi às ruas contra a queda do presidente Martín Vizcarra e a tomada do governo pelo Congresso Nacional. "De 2000 — quando teve a redemocratização — até 2020, grande parte dos protestos eram muito focalizados em temas regionais ou temas muito específicos", explica.
Essa virada se dá pela crise política que abala o país desde 2016 somada à crise sanitária e econômica provocada pela pandemia de COVID-19. O especialista aponta que esse ciclo coloca em xeque o sistema político como um todo, afeta o domínio da pauta nacional pelo fujimorismo e exige mudanças mais profundas para o país.

"A Constituição de 1993, que continua em vigência, dificulta o acesso por parte da população aos direitos sociais e traz uma fragilidade muito grande ao Estado de bem-estar social. A gente percebe que neste ciclo de protesto 2022–2023 esse processo de transformação, que ao meu ver já vinha acontecendo, ganha uma intensidade muito grande. É importante que esse processo de transformação implique em mudanças na Carta Constitucional, seja por meio de reformas mais profundas ou da produção de uma nova Carta Magna."

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O pesquisador da UERJ acredita que "a intensidade e a perseverança" das manifestações pressionam o sistema político a antecipar as eleições e a realizar uma consulta sobre uma nova Constituição. Ele aponta que uma solução mais imediata para a crise seria a construção de um governo de transição, pauta levantada por expoentes da esquerda peruana, como Verónika Mendoza, dirigente do partido Novo Peru.
Questionado sobre a inspiração que o Chile pode ter no processo mobilizatório peruano, Torres Prieto disse que é possível, sim, que se percorra o "caminho chileno", mas pondera que vai depender de como a jornada de protestos prosseguirá.

"Se as marchas continuam a acontecer e mais vidas humanas se perdem, talvez possamos percorrer o caminho chileno, mas o resultado pode ser diferente do reivindicado pelos mais necessitados."

Em entrevista às jornalistas Melina Saad e Thaiana de Oliveira, do podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, o diplomata Paulo Portela, professor de direito internacional público da Universidade de Fortaleza (Unifor), apontou que "o Peru é mais um caso de um país latino-americano que infelizmente continua patinando na instabilidade".

"Na década de 1990 se acreditava que a América Latina tinha entrado em uma era de paz e prosperidade, mas ela ainda padece de alguns problemas graves, com instituições ainda muito frágeis. O Peru, que basicamente tem tido um presidente ou menos por ano, é um país com instituições ainda muito frágeis."

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