Em primeiro lugar, a Rússia volta a se apresentar como um polo de poder que busca se antepor ao modelo de mundo unipolar defendido pelos Estados Unidos – modelo esse que conta com a anuência tácita de seus aliados europeus.
Desse modo, Moscou visará desativar as bases de sustentação do "unilateralismo" americano no mundo, em favor de uma redistribuição do poder global (tanto político quanto econômico) para novos polos de poder e para novos centros de influência regional.
Ao mesmo tempo, ficou claro pelo documento que Moscou continua aberta ao diálogo com o Ocidente, demonstrando sua intenção de não fechar as portas em definitivo para uma cooperação bilateral mais justa.
Com isto, a Rússia objetiva colaborar com os países ocidentais como um "igual entre pares", ou seja, tendo seus interesses e preocupações levados em consideração por europeus e americanos, ponto esse que, vale frisar, esteve sempre presente no discurso político de Putin nos anos 2000.
Num segundo momento, a Rússia enfatiza a importância da preservação de suas tradições históricas e de sua especificidade civilizacional (milenar) baseada em uma união de distintas culturas e povos a residirem por séculos em seu território.
O papel do país, nesse contexto, se faz como o iniciador de um novo projeto de integração civilizacional na Eurásia, com pretensões de se tornar um centro de poder e influência independente nas relações internacionais. Opõe-se assim o "coletivismo" predominante no espectro social e desenvolvimentista russo ao projeto "individual" e materialista do Ocidente como modelo de organização da sociedade.
Como resultado, a Rússia continuará sendo o principal obstáculo para o projeto ocidental de globalização homogeneizante, servindo de Estado-modelo para que outros países também possam defender sua história, valores e tradições diante da agenda de desconstrução encabeçada sobretudo pelos Estados Unidos.
Disso resulta a aproximação de Moscou com o mundo islâmico, que, assim como a Rússia, não compartilha da agenda cultural e política impulsionada pelo Ocidente para o resto do mundo. Trata-se, na prática, de pôr fim a mais uma cruzada dos americanos e (como não poderia deixar de ser) dos países europeus em sua nova "missão civilizatória" no mundo, prática essa que contém em si mesma claros sinais de patronagem de sociedades consideradas – por assim dizer – "menos avançadas".
Quando o imperialismo político dos países ocidentais se espalhou pelo mundo entre os séculos XVI e XIX, existia, além das razões econômicas, a intenção justamente de "civilizar" outros povos considerados inferiores e atrasados. Hoje, contudo, a Rússia demonstra os limites desse novo projeto e o faz em conjunto com outras civilizações – ou por que não dizer Estados-civilizações – importantes, como é o caso, por exemplo, de China e Índia.
Sobre estes dois, o Novo Conceito de Política Externa da Rússia oferece especial ênfase, demonstrando a consolidação da "viragem asiática" do país no contexto de um crescente isolamento por parte do Ocidente.
Bem pudera, afinal a ideia de defesa dos interesses nacionais da Rússia por meio de uma cooperação mais profunda com potências asiáticas como China e Índia já fora preconizada ainda em finais da década de 1990 pelo eminente diplomata Yevgeny Primakov (ministro das Relações Exteriores de 1996 a 1998 e primeiro-ministro russo entre 1998 e 1999).
Do estabelecimento de alianças com China e Índia é que a Rússia pretende continuar o processo de consolidação de um mundo multipolar que reflita a pluralidade civilizacional e de sistemas de valores nas relações internacionais. Não por acaso, o próprio presidente Putin reconheceu em Primakov "um dos autores do conceito de mundo multipolar" ainda na década de 1990, num momento em que o domínio americano parecia verdadeiramente inabalável.
No mais, a Rússia promete uma abordagem pragmática e "desideologizada" para sua aproximação com os países latino-americanos, também fundamentada no fortalecimento de uma parceria para a defesa da "multipolaridade". Nesse quesito, vemos uma diferença quanto ao relacionamento de Moscou com os países da região existente no período da Guerra Fria, que se deu no âmbito da expansão do modelo socialista soviético para diversas partes do globo.
No plano atual, a Rússia pretende atuar sem um matiz ideológico pré-determinado, mas ainda assim estabelecer contatos mais próximos com a América Latina para fins não somente comerciais como também para atingir o objetivo político de estreitar laços com o Sul Global, trabalhando em conjunto contra as aspirações hegemônicas do Ocidente no sistema.
Aqui, faz-se necessário ressaltar também o papel do continente africano, que possui desconfianças bastante arrazoadas quanto aos países ocidentais por conta de seu conturbado passado histórico e colonial. A própria política intervencionista dos europeus, sobretudo durante o século XIX, fez com que muitos países africanos se tornassem palco de ressentimentos políticos que perduram até os dias atuais.
Além do mais, o continente ainda mantém viva na memória a ajuda oferecida por Moscou durante a Guerra Fria para os seus processos de descolonização e de independência frente às antigas metrópoles, o que oferece um grande capital político para Rússia em sua relação com as lideranças africanas.
Logo, essa (re)aproximação da Rússia com a África e a América Latina (sugerida justamente em seu novo Conceito de Política Externa) visa expandir a política externa de Moscou para áreas onde até então sua presença acabou tornando-se limitada, sobretudo após o colapso soviético.
Por certo, o futuro vislumbra o surgimento de novas alianças e parcerias que comprovam que a Rússia não está, nem nunca esteve, realmente isolada (como se quer fazer pensar no Ocidente), além de confirmarem o papel ativo de Moscou na construção de um mundo mais diverso e multipolar.
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