Especialistas: relação de Lula com Congresso depende cada vez mais de negociações 'no varejo'
16:27, 11 de outubro 2023
Mesmo após conquistar ministérios e cargos em autarquias do Executivo, o Congresso segue buscando mais emendas parlamentares e maior controle sobre elas.
SputnikA concessão de cargos, ministérios e emendas individuais ao centrão a fim de garantir a governabilidade e conter as investidas do Congresso, que deseja aumentar seu poder frente ao Executivo,
travar pautas e abocanhar mais recursos públicos, tem sido recorrente nos últimos meses do governo de
Luiz Inácio Lula da Silva.
E a tendência é que a prática se torne rotina, segundo cientistas políticos ouvidos pela Sputnik Brasil. A atuação clientelista e fisiológica de setores do Congresso na negociação com o Executivo, levada a cabo mais notadamente pelo centrão, ocorre desde a instalação do sistema brasileiro de coalizão com a redemocratização do país.
A cobiça desse bloco de diferentes partidos que não se identificam ideologicamente nem com o governo, nem com a oposição parece estar cada vez mais aguçada:
"Ele [Lula] tem feito alterações e
ajustes à medida que os problemas vão se avolumando, evitando a lógica de responder à crise no atacado, na lógica partidária, e respondendo às questões mais no varejo", explica o
cientista político Robson Sávio Reis Souza, coordenador do Núcleo de Estudos Sociopolíticos da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).
O governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, acrescenta o professor,
deixou o terreno fértil para o protagonismo de vários grupos no Parlamento que, sob o guarda-chuva do conservadorismo, representam poderosos interesses de corporações, lobbies, latifundiários, grupos neopentecostais:
"Bolsonaro abriu mão da gestão do Estado, delegou tudo para o Congresso para ter uma base de sustentação. Não temos no Brasil partidos fortes, mas caciques fortes, [...] as lideranças no Congresso são muito personalistas, formando coalizões geralmente locais ou regionais. O que vemos são agremiações aprovando apenas pautas dessas lideranças."
Esse raciocínio é parecido com o do cientista político da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Geraldo Tadeu Monteiro, que lembra que o centrão sempre foi o esteio da governabilidade de todos os governos democráticos, e sua heterogeneidade, um desafio nas negociações com o Executivo, que têm ficado mais tensas:
"As negociações com esses aglomerados de pessoas e interesses sem compromisso ideológico sempre existiram, mas com os anos turbulentos de Bolsonaro, esse jogo está mais explícito e aberto", comenta.
Mesmo
após conquistar ministérios,
com a minirreforma ministerial para acomodar integrantes do PP e do Republicanos —
partidos que, ao lado do PL, formam o tripé do centrão —, o Congresso segue buscando
ampliar o valor das emendas parlamentares e assumir maior controle sobre elas. A proposta agora é criar um novo modelo de divisão das emendas parlamentares, que somam bilhões, o que pode reduzir ainda mais o poder do Executivo nas negociações políticas com deputados e senadores.
Emenda de liderança
Alcunhada de "emenda de liderança", o novo modelo de distribuição de emendas parlamentares pode ser aprovado no fim do ano. Parte de um movimento do Congresso de ampliar ano a ano o valor da verba e dar mais autonomia sobre seu uso a deputados e senadores, a iniciativa propõe que as emendas, que totalizam bilhões de reais por ano e são de responsabilidade dos ministérios, fiquem sob o controle dos líderes dos partidos.
O centrão também quer introduzir um cronograma com datas definidas para a liberação das emendas por parte do governo federal, o que prejudicaria o poder de negociação do Executivo para a aprovação de pautas, como ocorreu em julho,
quando Lula criou novos ministérios e autorizou o repasse de mais de R$ 7 bilhões em emendas individuais para garantir a aprovação de projetos na área econômica.
Recursos do orçamento público alocados pelos membros do Congresso Nacional e das Assembleias Legislativas estaduais, as emendas parlamentares são divididas em três tipos: individuais, de bancada e de comissão. A primeira vai para cada deputado e senador, a segunda para ações escolhidas pelos parlamentares de cada estado e a terceira é controlada por quem ocupa cada colegiado do Congresso.
Com o fim das emendas do relator,
consideradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no ano passado, metade da verba vai diretamente para os parlamentares e metade é dividida entre sete ministérios.
Na opinião de Monteiro, a aprovação de um novo modelo de distribuição de emendas não implica na redução da margem de manobra por parte do Executivo:
"Não vejo nenhuma consequência grave no nível institucional, pois a política deve ser lida nas entrelinhas, e, nesse caso, o Executivo tem ainda muito poder de barganha, são muitos recursos para serem negociados", comenta ele.
Para Souza, possíveis mudanças na gestão das emendas podem causar um desequilíbrio nas atribuições entre os Poderes:
"Corre-se o risco de transformar o Legislativo em um mini Poder Executivo, prejudicando a gestão da coisa pública, que passa pelo Orçamento."
O professor da PUC Minas pondera que o período é de instabilidade política e institucional, em que os ataques do 8 de Janeiro ainda não estão totalmente esclarecidos:
"E o perfil conservador da Câmara, com interesses de múltiplos grupos, tem gerado uma contraofensiva com o objetivo claro de enfraquecer o presidencialismo e seu poder de pautar projetos no Parlamento."
Já para Monteiro, essa "redefinição de fronteiras institucionais" são como placas tectônicas "que estão em constante movimento e que de vez em quando entram em atrito", e, apesar do apetite aparentemente insaciável do centrão, Lula ainda tem um amplo leque de opções como moeda de troca para a aprovação de projetos de seu interesse:
"O governo Lula ainda está em processo de acomodação, ainda está montando seu governo. Há muitos cargos de diferentes escalões que ainda não foram preenchidos, seja [...] em ministérios, em autarquias nos estados, no segundo e terceiro escalões do governo federal", destaca ele.
Lula e centrão: 'Dando os anéis para não perder as mãos'
Ambos os especialistas acreditam que a capacidade de negociação e de análise do cenário político de Lula tem sido o grande diferencial neste primeiro ano de seu terceiro governo.
"Lula já cometeu muitos erros,
passou pelo mensalão, petrolão, percalços no caminho que deram a ele muita experiência. Além disso, tem uma tropa de choque que ajuda a contemplar os diferentes grupos de interesses", avalia Monteiro.
Souza acrescenta que o que o presidente tem conseguido é "dar anéis para não perder as mãos", decepcionando muitas vezes o campo progressista da sociedade.
Resta saber se será suficiente para
aprovar projetos importantes e avançar em agendas prioritárias do Executivo nos próximos meses, como a proposta para
alterar a cobrança de impostos sobre ganhos com empresas offshore (no exterior) e de
super-ricos (Projeto de Lei 4173/23), que sofre resistência na Câmara e cuja votação vem sendo adiada pelo Congresso.
"As chantagens têm aumentado, e por trás do manto do conservadorismo estão poderosíssimos interesses muito bem articulados dentro do Congresso e que estão se sobrepondo aos partidos", alerta Souza.
"Tudo isso tem um preço. Uma adesão exagerada de partidos ao governo pode acabar sacrificando ou paralisando projetos mais estruturantes ou mais polêmicos, descaracterizando a política do próprio governo", completa Monteiro.