'Problema começa após a dolarização': especialistas discutem futuro da economia Argentina
19:16, 2 de novembro 2023
Com uma inflação acumulada de 138,3%, no período de 12 meses até setembro deste ano, a economia é o principal ponto de contenda na corrida presidencial da Argentina deste ano. Enquanto Massa, atual ministro da Economia, advoga pelo crescimento das exportações, seu opositor, Javier Milei, quer desistir do peso argentino e dolarizar a economia.
SputnikDe acordo com os especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil, a economia argentina já vive uma "
dolarização não-oficial", cujo governo atual luta contra.
A proposta de Milei, então, seria abraçar de vez o processo, extinguindo o Banco Central da nação.
"A dolarização é um processo que aproxima o comportamento de uma moeda nacional ao dólar, inclusive com a eliminação da moeda nacional em caso de dolarização total", explica Rodrigo Rodriguez, professor adjunto de economia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
O processo, explica Rodriguez, pode se mostrar extremamente difícil de ser implementado na prática.
Para que ele ocorra é preciso que o país obtenha uma quantidade de dólares grande o suficiente em suas reservas monetárias para realizar a troca cambial.
"No caso argentino temos que levar em consideração que ela não tem reservas em dólares suficientes para trocar por peso", disse Johnny Silva Mendes, professor de Economia da FAAP e economista chefe da BridgeSea Consultoria Econômica.
"Os custos envolvidos nesse tipo de transação são os custos de se obter esses dólares", esclarece Mendes.
"Logo ela teria que buscar comprar esses dólares a preço de mercado, e sem dinheiro é muito provável que ela teria que emitir novos títulos", afirmou Mendes, lembrando que com o juros na casa dos 130% ao ano, a emissão de títulos seria um processo custoso até mesmo no longo prazo.
Rodriguez estima que o custo monetário de realizar toda essa operação de dolarização está na casa dos US$ 34 bilhões (R$ 168 bilhões), conforme as taxas de câmbio atuais.
"Para bancar esse custo, o Banco Central argentino teria que converter suas reservas de metais e de outras moedas em dólares, e mesmo assim ainda teria dificuldades para alcançar uma quantidade segura de reservas em sua economia", ressalta Rodriguez.
12 de outubro 2023, 19:00
Os perigos de uma economia dolarizada
Mesmo que Milei
consiga ter capital político para aprovar a dolarização,
algo que nem setores da elite argentina querem, e concretizar o processo, os problemas para a economia da Argentina podem apenas estar começando.
"O problema real só começa após a dolarização", afirma Rodrigo Rodriguez.
Isto porque, com uma dolarização completa, o governo do país fica limitado na condução da política monetária e cambial do país. "O Banco Central argentino não vai ter mais a possibilidade de imprimir papel moeda para suprir necessidades, suprir crises e dar ajuda aos bancos em períodos de crises sistêmicas", afirmou Johnny Mendez. Na verdade, explica, o país fica então submetido às políticas de controle monetária norte-americanas.
"Se a prime rate [taxa de juros americana] entra em um novo ciclo de alta, os Estados Unidos sugam a liquidez global de dólares de volta para o seu território, incluindo os dólares que estão na Argentina. No caso de escassez de dólares, o que a economia argentina vai fazer, buscar mais empréstimos junto ao FMI?", alertou Rodriguez.
Os desafios de se entregar o controle da política monetária a outro país já podem ser vistos hoje, aponta Mendez, com a alta da inflação nos EUA, que faz faz com que a moeda estadunidense perca valor.
"Isso faz com que um país como a Argentina, que está passando por dificuldades, sofra, já que está submissa aos modelos de políticas norte-americanas e submissa a inflação norte-americana."
Uma economia dolarizada no BRICS?
Os esforços de Milei de dolarizar a economia argentina também demonstram sua atitude contra o BRICS, grupo de países que a Argentina está marcada para entrar em 1º de janeiro de 2024, mas cuja entrada o candidato à presidência já se mostrou a favor de reverter.
Nos últimos meses, o BRICS aprimorado sua política de trocas em moedas nacionais, e até mesmo buscando a criação de uma moeda para o bloco, uma vez que não querem ficar expostos ao controle exercido pelos Estados Unidos no sistema financeiro.
Nesse sentido, diz Mendez, a situação pode não ser tão complicada assim, lembrando o caso do Reino Unido quando fazia parte da União Europeia.
Na época, a nação britânica não adotou o euro, moeda comum do bloco econômico, optando por continuar com a libra esterlina.
Relações com a China
À parte das suas relações com o Brasil, o outro grande parceiro comercial da Argentina é a China, outro país que busca
combater a primazia do dólar como moeda global, e outro país que
Milei diz que irá se afastar, algo que muitos especialistas tem descrito apenas como
uma bravata por parte do candidato à presidência.
Segundo Rodriguez, hoje a China possui
mais de US$ 2 trilhões (R$ 10 trilhões) em seus cofres, fazendo com que o país asiático veja mais sentido em
estabelecer acordos bilaterais que favoreçam o yuan, a moeda chinesa, e formem parcerias duradouras, do que combater o dólar ao redor do planeta.
"O governo chinês, assim como faz com o Brasil e com outros países, estabelece negociações bilaterais com o intuito de fazer com que as trocas entre os países, seja exportações ou importações, ocorram pelo menos em parte em yuan", explicou Mendez.
Surpreendentemente, a parceria com a China, ressaltam os especialistas, pode também se mostrar fundamental na campanha de dolarização da economia argentina. "O investimento estrangeiro da China na Argentina coopera para que a economia tenha estabilidade, e inclusive, que esse plano de dolarização possa se concretizar", afirmou Mendez.
"Na prática, a dolarização oficial da Argentina só pode acontecer com o aprofundamento das relações com a China. A Argentina costuma exportar entre meio e um bilhão de dólares por mês para a China, parte expressiva da oferta de dólares que entra para o país", disse Rodriguez.
25 de outubro 2023, 15:37
Há solução para a Argentina que não passe pela dolarização?
Mesmo que a dolarização vem com uma série de desvantagens, afirma Mendez, ela traz pelo menos uma vantagem muito clara: a estabilização dos preços. "É também uma razão pela qual a grande maioria da população nas nações dolarizadas não deseja um regresso a uma moeda nacional", afirmou.
"Dolarizar a economia é, na realidade, retomar o controle, ainda que de forma terceirizada", disse Mendez. "Tanto a economia do Panamá, El Salvador e Equador, estavam com a economia fora de controle e a dolarização se mostrou muito assertiva."
No entanto, se para Mendez a dolarização é uma alternativa extremamente viável para a crise econômica argentina, para Rodriguez há
outras formas do governo recuperar o comando da economia do país, como a
reestruturação da dívida externa.
"A economia argentina carrega nas costas o peso do pagamento de uma dívida externa extremamente injusta e pouco transparente", explicou Rodriguez.
"A inflação argentina é fruto de um processo longo que tem início no crescimento da dívida externa a partir de 1976 e que se arrasta até os dias atuais", esclareceu Rodriguez. "Mesmo com diversas renegociações nas décadas de 80 e 90, essa dívida argentina nunca parou de crescer."
Esses déficits imobilizam tanto o Banco Central, quanto o governo, de realizarem políticas monetárias e fiscais que tragam a tão sonhada estabilidade econômica.
"Não tem como pensar em um combate efetivo à inflação sem uma reestruturação da dívida externa argentina", ressaltou.
Para Rodriguez, a proposta de dolarização da economia, no fim, é mais um discurso de campanha do que um objetivo factível de Milei.
"O que, na prática, Milei está propondo é um Banco Central mais conservador e alinhado com uma política fiscal restritiva."
16 de outubro 2023, 19:33