Panorama internacional

Viagem de Lula à Alemanha traz chance de tratar da agenda climática sem hipocrisia europeia

Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam que visita de Lula visa estreitar laços com o país e tratar da agenda climática sem o viés hipócrita utilizado para mascarar o protecionismo que trava a assinatura do acordo entre o Mercosul e a União Europeia (UE).
Sputnik
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva desembarca na Alemanha neste domingo (3) para o encontro com o chanceler alemão, Olaf Scholz, e para uma série de reuniões com autoridades do país e líderes empresariais.
A visita oficial ocorre em meio a cobranças do presidente por uma maior contribuição financeira de países ricos para a mitigação dos efeitos das mudanças climáticas e pela reforma nas instituições de governança global. Ademais, o encontro ocorre com o Brasil já na presidência temporária do G20, assumida nesta sexta-feira (1º).
A expectativa em torno da viagem é alta também do lado alemão. Em entrevista recente, a embaixadora da Alemanha no Brasil, Bettina Cadenbach, exaltou o Brasil como um grande parceiro da Alemanha e disse que a visita de Lula é uma oportunidade para aprofundar as relações entre os países.
A Sputnik Brasil conversou com especialistas para analisar as oportunidades que a visita traz para a agenda do Brasil de pressionar por uma nova ordem global e quais benefícios o estreitamento de laços com a Alemanha pode trazer para o país.

A importância da política externa independente do Brasil

Afonso de Albuquerque, professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (PPGCOM-UFF), explica que o Brasil é considerado um parceiro importante por conta de sua capacidade de interlocução tanto com o Ocidente quanto com os países do Sul Global que, de alguma forma, estão de um lado alternativo ao Ocidente.

"O Brasil é um país que atua como quebra-gelo, que tem a possibilidade de construir pontes entre países que estão em lados muito separados entre si — o universo do Ocidente e o universo do BRICS, por exemplo."

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Ele acrescenta que há margem para Lula aproveitar a viagem para elevar a pressão por maior participação de países ricos no combate às mudanças climáticas, e afirma que o governo atual é mais receptivo ao tema pelo fato de o Partido Verde alemão ser parte da coalização do governo de Scholz.

"A Europa permite ao Brasil promover o seu próprio discurso, que não é o da Europa […]. A ênfase que a Europa coloca na questão ecológica como questão fundamental da agenda global, determinante no comércio internacional, é uma agenda que interessa ao Brasil, porque o Brasil tem o que vender no plano da agenda ecológica mais do que qualquer outro país."

Qual a relação do Brasil com a Alemanha?

Natali Hoff, professora de relações internacionais do Centro Universitário Internacional (Uninter), destaca que a visita de Lula também reflete um momento de retomada de relações, após anos de distanciamento, vivenciados desde o governo Dilma Rousseff, que tinha uma boa interlocução com a ex-chanceler alemã Angela Merkel.
"Depois [do governo Dilma], a gente vai ter o governo [Michel] Temer, um governo complicado. E quando chega o governo Bolsonaro, temos um momento de afastamento bem mais significativo por conta das posições do governo Bolsonaro com relação, sobretudo, ao meio ambiente, uma política antiambientalista, que se contrapunha muito à postura da Alemanha diante dessas agendas de mudanças climáticas e de proteção ao meio ambiente, mas também por conta das posições desse governo com relação à própria democracia."
Ela acrescenta que, em 2023, "com o [terceiro] governo de Lula, começa a ter uma retomada bem significativa nas relações entre os países, inclusive envolvendo visitas recentes ao Brasil de autoridades importantes da Alemanha, incluindo Scholz".

"Acredito que o [terceiro governo de] Lula para a Alemanha é uma sinalização importante dessa reconstrução ou desse reforço dos laços entre os países e do comprometimento do Brasil em continuar enfatizando essa parceria estratégica com a Alemanha."

A importância do Brasil para a Alemanha

Natali Hoff destaca que o interesse do governo alemão no estreitamento de laços com o Brasil visa mitigar a crise energética que assola a Alemanha, especialmente após a eclosão do conflito entre Rússia e Ucrânia. Ela afirma que o país busca diversificar sua matriz energética ampliando o uso de fontes renováveis, o que traz grandes oportunidades para o Brasil.
"A Alemanha tem enfatizado muito a importância da ideia do hidrogênio verde, que é produzir hidrogênio a partir de energias renováveis, e está na vanguarda de tentar encabeçar esse hidrogênio verde como uma possibilidade de […] ter novas fontes de energia para substituir petróleo, carvão e gás. Por que isso é uma oportunidade para o Brasil? Porque na produção desse hidrogênio verde, a Alemanha tem desenvolvido essa tecnologia. Mas ela não tem toda a matéria-prima e todo o potencial para essa produção. Porque geralmente depende de energia eólica, hidrelétrica ou solar, e o Brasil é um país com muita potencialidade nesse sentido."
Ela acrescenta que isso beneficiaria particularmente "regiões como o Nordeste, por conta do seu potencial para a produção de energia eólica e, também, energia solar".
Albuquerque, por sua vez, destaca que a Alemanha vive uma situação crítica, causada por diferentes fatores, que criaram uma tempestade perfeita.

"Acho que o problema da Alemanha não é propriamente que existe uma crise energética que afeta o país de maneira […] cruel. O problema é que a Alemanha é um país que tem problemas de acesso a fontes de energia renováveis. A Alemanha não tem gás, não tem petróleo, tem um limite de energia hidrelétrica mais ou menos determinado e ainda por cima fechou as suas usinas nucleares. Isso produziu uma certa tempestade perfeita em relação à Alemanha", diz o especialista.

Ele acrescenta que, em contraponto, o Brasil "está numa situação diferente e vive a crise climática, como outros países também experimentam".

Agenda climática como moeda de troca e hipocrisia no discurso da Europa

Ambos os especialistas concordam que, atualmente, a pauta climática tem impacto nas relações comerciais, e um bom exemplo é o entrave na conclusão do acordo entre o Mercosul e a UE. Afonso de Albuquerque chama atenção para certa hipocrisia na retórica europeia com relação ao discurso ecológico.

"A Europa se transformou num agente muito vocal do discurso ecológico, mas a Europa não tem floresta […]. A massa florestal europeia é muito pequena em comparação com o que foi, a Europa foi um continente altamente florestado. Então a Europa efetivamente produziu o desmatamento."

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Ele acrescenta que as atuais políticas voltadas para reverter esse cenário "ainda são muito tópicas, comparadas ao Brasil que, com todo o desmatamento que produziu nos últimos anos ou nas últimas décadas, ainda tem uma massa florestal relevante".
"Então a Europa tem um discurso ecológico, e essa é a graça, mas que se aplica à massa florestal alheia. E esse discurso é frequentemente utilizado de maneira ambígua, de uma maneira que se pode dizer de alguma forma hipócrita. Porque o discurso da proteção florestal frequentemente passa a ser associado a medidas de protecionismo agrícola, cuja lógica não tem nada a ver com uma lógica ecológica. É uma questão de garantir que o preço do produto produzido na Europa seja mais competitivo em relação ao preço dos países que dispõem de massa florestal."
Natali Hoff chama atenção para o posicionamento da França, que aponta como um dos entraves para o acordo Mercosul-UE.
"A França, e principalmente os franceses, veem com reticências a possibilidade de […] abrir esse acordo. […] os agricultores franceses têm bastante receio do que isso ia significar ali para eles", afirma a especialista acrescentando que, nesse contexto, "consolidar a Alemanha como parceiro é muito importante".
Ela destaca ainda que outro fator que trava a assinatura do acordo é a cobrança de países europeus, que afirma ter contornos coloniais, para que países do Mercosul cumpram metas de redução de emissões que os próprios europeus não se comprometeram a cumprir no Acordo de Paris.

"Os europeus fazem muitas cobranças e, inclusive, querem impor sanções para os países do Mercosul que não cumprirem com os termos do acordo com relação ao meio ambiente. Estão cobrando até que países como o Brasil diminuam as emissões de CO2 acima do que esses países se comprometeram no Acordo de Paris. Acho que a questão ambiental […] causa embaraços e dificulta as relações. Um protecionismo até com tons de colonialismo, quando você quer impor algo para os países até acima do que eles se comprometeram em outras instâncias internacionais."

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Na avaliação de Albuquerque, atualmente a posição brasileira está mais consolidada, no sentido de dirigir o discurso ecológico que diz respeito aos seus produtos.
"Até 10, 20 anos atrás, o Brasil reagia a discursos externos em certa posição de alguém que tem que ser um bom menino, uma boa menina, alguém que cumpra bem as regras que foram estabelecidas a partir de fora. […] hoje existe um esforço, ligado a uma política de afirmação de soberania nacional, de dizer: 'Sim, nós consideramos a questão da agenda ecológica [algo] muito importante, mas a maneira como essa agenda deve ser pensada deve ser, de alguma forma, operacionalizada. Não pode ser simplesmente a partir da mera obediência a regras externas, isso é imperialismo.'"

Visita do Brasil à Alemanha e fortalecimento da nova ordem global

Natali Hoff destaca que a Alemanha, assim como o Brasil, faz parte do G4, junto com Índia e Japão. O grupo foi criado como uma aliança entre os quatro países no intuito de apoiar suas respectivas candidaturas como membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU).
Segundo ela, isso abre margem para que o tema da reforma das instituições de governança global seja incluído na visita de Lula à Alemanha.

"Acredito que seja um assunto que deva aparecer, porque Alemanha e Brasil fazem parte do G4, que são esses países que pressionam por uma reforma no Conselho de Segurança das Nações Unidas para que ele possa ser mais democrático, já que ali tem cinco membros com poder de veto, e a gente viu o que acontece com isso na resolução do Brasil com relação ao conflito entre Israel e Hamas. A resolução brasileira, que foi aprovada por 12 países no Conselho, uma aprovação muito alta, mais do que o mínimo para se conseguir aprovar resolução, acabou não sendo aprovada por conta do veto norte-americano."

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