De início, Putin deixou bem claro que o fortalecimento da soberania da Rússia é um elemento fundamental para sua sobrevivência no cenário internacional. Para a consecução desse objetivo foi que o país iniciou justamente a operação militar especial no ano passado, com a meta de mitigar a ameaça que vinha sendo emanada do país vizinho.
No começo da coletiva, Putin fez questão de lembrar que, "na sua essência, russos e ucranianos são um só povo", constituindo uma verdadeira tragédia à eclosão de hostilidades envolvendo duas nações-irmãs, quase que uma guerra civil.
A Rússia, por sua vez, está lutando para defender as populações do antigo sudeste ucraniano, dado que tais regiões, além de serem territórios historicamente russos, também vinham sofrendo com constantes violações aos direitos humanos ocasionadas pelas tentativas de retomada militar do controle daquelas partes pelo governo de Kiev desde 2014.
Ao mesmo tempo, Putin lembrou que no âmbito de sua atual contraofensiva, a Ucrânia não conseguiu mostrar nenhum sucesso, o que escancara a ilusória expectativa do Ocidente quanto a uma possível derrota das forças russas no campo de batalha, algo que já se mostrou inviável. Com isto, os planos aos quais Washington e a União Europeia aderiram em meados do ano passado provaram seu definitivo descolamento da realidade.
Presidente russo durante a Linha Direta com Putin, uma sessão anual de perguntas e respostas, bem como sua 18ª conferência de imprensa anual de fim de ano, no Centro de Exposições Gostiny Dvor, em Moscou, 14 de dezembro de 2023
© Sputnik / Gavriil Grigorov
Enquanto isso, as populações de diversos países do Ocidente já estão cansadas de pagar o preço por esse aventurismo geopolítico incutido na luta contra Moscou "até o último ucraniano", ao passo que a Ucrânia, como mencionou o presidente russo, "empurra seu povo para o extermínio".
O Exército russo, no âmbito da operação militar especial, não tem outra escolha a não ser a destruição dos tanques e de todo o equipamento fornecido pelo Ocidente a Kiev, de forma a provocar a desmilitarização do país vizinho.
Essa, por sua vez, é justamente um dos objetivos por trás da operação russa, que Putin prometeu terminar de forma bem-sucedida. Não obstante, a neutralidade ucraniana diante da Aliança Atlântica também é uma das principais demandas russas em uma futura conversação de paz.
Afinal, cabe ressaltar que foi através de uma emenda aprovada em 2019 pelo parlamento ucraniano que Kiev apontou sua intenção de aderir à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), o que constitui uma ameaça significativa para a segurança da Rússia. Para além da Ucrânia, a paralisia da ONU diante dos conflitos internacionais de hoje também foi um dos temas levantados na coletiva, sobretudo em se tratando do Conselho de Segurança.
Putin lembrou que o direito de veto conferido aos membros permanentes tratava-se de uma garantia de que nenhuma grande potência, a priori, romperia inadvertidamente com o balanço de poder do pós-guerra.
Desse modo, o veto representa o reconhecimento jurídico formal da responsabilidade especial de cada uma das grandes potências vencedoras na Segunda Guerra Mundial de zelar pela paz e pela segurança internacional. O problema, no entanto, do período pós-guerra foi a ausência de um consenso amplo sobre questões centrais da agenda global entre as principais potências do sistema.
Na maior parte das discussões, os membros permanentes não conseguem chegar a um acordo sobre como tratar os principais assuntos em pauta, dada suas diferenças de visão de mundo a respeito da ordem internacional.
Deriva daí a incapacidade percebida por muitos em torno de o Conselho de Segurança ser capaz de atuar como um fator decisivo para a resolução das crises hoje em curso no Leste Europeu e no Oriente Médio. Entretanto, não fosse pelo mecanismo de veto e pela própria importância atribuída ao Conselho de Segurança no sistema internacional, a ONU se transformaria, nas palavras de Putin, em um simples clube de conversas vazias.
Quanto ao conflito em Gaza, Putin prometeu que a Rússia aumentará as entregas de equipamentos e de medicamentos para a região a pedido das autoridades locais, incluindo Israel. Acrescentou ainda a possibilidade de abrir um hospital russo para ajudar as vítimas civis, o que chegou a ser discutido com a liderança egípcia e israelense.
Putin classificou como "catastróficas" as perdas humanas em função das operações de Israel em Gaza, que já vitimaram milhares de pessoas (em especial crianças e mulheres). Não sem razão, o líder russo apontou para o aumento do antissemitismo e da islamofobia ao redor do mundo, como resultado das tensões geradas pelos diversos episódios de destruição urbana e humanitária, que hoje podem ser acompanhadas praticamente em tempo real.
Enquanto isso, vale lembrar que a Rússia, desde meados de outubro, propôs uma solução negociada entre Israel e o Hamas, recomendando a implementação de um cessar-fogo humanitário no Conselho de Segurança.
Se as proposições da Rússia tivessem sido aceitas logo de começo pelas potências ocidentais, o que não acabou acontecendo, o derramamento de sangue em Gaza e o número de vítimas inocentes teriam sido muito menores.
Quanto à normalização das relações entre a Rússia e a Europa, Putin deixou bem claro que não foram os russos que se recusaram a cooperar, mas sim os próprios europeus, devido à sua submissão diante dos ditames do "grande irmão" estadunidense.
Já não é segredo que os países da Europa perderam grande parte de sua soberania desde a segunda metade do século XX por estarem debaixo do guarda-chuva de proteção americano, cuja principal expressão é justamente a OTAN. Quase não há hoje na Europa, afirmou Putin, políticos pró-nacionais, que defendam os interesses de seu país, dada a situação de subserviência do continente europeu para com os Estados Unidos.
A Rússia, enquanto isso, continua disposta a construir relações mutuamente benéficas com o Ocidente, desde que sejam criadas condições adequadas para tal, o que não deve acontecer no âmbito da famigerada "ordem baseada em regras", regras essas que mudam a depender da conveniência e do interesse dos países ocidentais.
Essa não é uma ordem na qual a Rússia, a China e os outros países do BRICS pretendem participar e isso deve ficar bem claro para todos. Pelo contrário, uma ordem global mais justa passa pelo estabelecimento da multipolaridade nas relações internacionais, que é exatamente um dos objetivos da Rússia hoje.
O presidente russo, Vladimir Putin, durante a conferência de imprensa Linha Direta com Putin, em Moscou, Rússia, 14 de dezembro de 2023
© Gavriil Grigorov
Portanto, Putin, como líder do país-chave por trás dessas mudanças, deve ser considerado, com a devida razão, um dos principais escritores dessa nova história do mundo e do século XXI.
As opiniões expressas neste artigo podem não coincidir com as da redação.